Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Pedra Noventa


Toda cidade cultiva cuidadosamente uma mitologia própria e muito peculiar. Durante a história de qualquer povo se vão juntando seres muitas vezes irreais, criados pelo inconsciente coletivo e alguns outros que certamente circularam por este mundo mas necessitaram ser maquiados com tintas surreais para alcançarem o status de mitos.Todas vilas, por menores que sejam, têm seus alicerces psicológicos calcados por seus Hércules, Ferrabraz , Dionísio, Pedro Malasartes, Prometeu e João Grilo. Esta mitologia projeta em todas as raças ares de grandeza , valentia, irreverência e nobreza. Quanto mais desenvolvida uma civilização , percebe-se, facilmente, mais complexos e poderosos são seus mitos e deuses.A mitologia fornece uma justificativa forte e irretorquível sobre as origens nem sempre publicáveis de um grande país e, também, acaba por justificar atos sociais e políticos , estabelecendo limites morais e éticos. Embrenhar-se em estudos mitológicos acaba sendo uma viagem clarividente em busca dos abismos da alma de uma nação.
Basta reparar bem para perceber que a doce irreverência cratense tem raízes fincadas num sem número de personagens míticos.Na sua maioria provieram das camadas mais baixas da população , mas apresentaram biografias tão interessantes que acabaram por serem alçados ao Olimpo. Sobrevivem aos políticos, aos afortunados e aos intelectuais que vêem invariavelmente seus nomes esmaecerem no máximo em três gerações. Imortalizam-se os mitos.Em cada esquina, em cada praça, eles são eternamente citados antes de se iniciar qualquer estória. Seus nomes são invocados numa espécie de oração profana, como se citassem referências científicas e bibliográficas que embasassem as narrativas e fofocas.O Crato tem um sem número deles : Capela, Antonio Cornim, Canena, Chico Soares, Melito, Josino, Ramiro para citar apenas alguns. Mantêm-se hoje próximo a Zeus mas bem vivos na mente e coração de todos os seus conterrâneos.Digo conterrâneos ,embora muitos sequer tenham nascidos aqui , mas terminaram sendo batizados pelas águas mornas do Rio Grangeiro.
Hoje vou lembrar de uma dessas personalidades. Um dos nossos maiores filósofos de rua. Chamava-se Joaquim Alves Correia e nasceu em 13/02/1913 em Assaré. Chegou em Crato ainda rapazinho e passou a morar no Seminário , nas proximidades da Igreja de São José. Casou por três vezes e povoou sua terra adotiva com 19 cratenses. Com este nome de Quinco certamente ninguém o reconheceria. Nosso mito imantou-se no espírito da cidade com o esdrúxulo nome de “NOVENTA” , justamente o número que carregava no boné de chapeado : a profissão que abraçou durante toda a vida.Figura atarracada e sanguínea mostrava-se muito delicado e paciente.Sua fineza de trato, no entanto, escondia um temperamento forte que soltava os cachorros com a mesma facilidade com que cultivava a educação. Falava com voz de barítono e de forma pausada e explicada como se mastigasse cada sílaba. Tinha fraseado fácil e destilava uma filosofia própria e bem humorada, juntando platéia rapidamente.Distinguia-se dos outros chapeados por uma característica inimaginável. Gostava de ler e aproveitava todas as revistas velhas que conseguia para manter-se atualizado. Esta peculiaridade lhe proporcionava galões próprios e não gostava de se misturar com os outros colegas que mal encetavam uma conversa mais séria. “Noventa” tinha uma carrocinha muito bem cuidada que usava na cidade para fazer pequenos carretos. À frente escrevera em letras bonitas, os seus rudes princípios de solidariedade : “ Uma mão lava a outra” . Os estudantes da cidade , cientes da resposta pronta e direta , perguntavam-no :
--- E as duas mãos, Noventa ?
A arremate não tardava :
--- Lava o rabo da mãe , meu filho !
Numa destes dias de sol de trincar azulejo, nosso chapeado empurrava sua carrocinha com uma cara emburrada, bem diferente daquela habitual que transportava. Um engraçadinho da cidade, interrogou-lhe sobre o que estava acontecendo. “Noventa” explicou que a cabeça rachava de enxaqueca. E tudo tendia para piora por conta do calor. O senhor então lhe lançou uma chacota :
--- Pois eu, Noventa, quando tou assim, é só ir para casa e fazer sexo com minha mulher que a dor passa num minuto.
O chapeado não perdoou :
--- É ... eu podia até passar na casa do senhor, mas não sei se sua mulherzinha tá lá agora....
“Noventa” tinha uma explicação plausível para tudo nesta vida. Sua concepção de saúde :
--- Quando vou ao banheiro sei logo se tou doente ou não. Tolete de gente sem morrinha quando cai na água da bacia da privada faz : “Tibummmmm” !
Gostava de pregar para platéia como se dirigisse a apóstolos. As pessoas não desviavam os olhos dele enquanto pregava. Extremamente diplomático, tratava todos os médicos delicadamente, antevia que mais cedo ou mais tarde iria precisar de consultas e internamentos. Satirizava-os assim com uma ironia fina e bem dosada :
--- Ô Bicho fino é doutor ! Doutor é bicho fino demais, meu senhor ! Você vai passando na rua com a patroa , se um cabrinha qualquer ao menos esticar os olhos pra ela , num brinque não : é tapa, é faca , é tiro ! Aí você leva a mulher pro doutor paga a consulta, ele mete os dedo nos “urinaro” dela, futuca pra cá, cutuca pra lá e a gente ainda agradece: Obrigado, doutor ! Ô Bicho fino é doutor, meu amigo ! Arrepare só : se a gente se mete em confusão ,larga a faca num sem vergonha qualquer, lá vem polícia, lá vem delegado, juiz. A gente é preso e pra sair é um trabalho danado. Já doutor mata, o povo enterra , num vem polícia, ninguém pergunta nem o que foi...Vixe que bicho fino é doutor !
“Noventa” subiu para o Olimpo em 18/02/1994. Seu espírito no entanto sobrevive em todos os bares, praças e ruas do Crato. Sua carrocinha já não cruza a cidade, mas a simples lembrança do nosso filósofo ambulante nos remete a uma época dourada da nossa vila. Se a mão do Crato deu-lhe guarida, a mão de Noventa povoou de mágicas e magias nossa mitologia, como ele previra : uma mão acabou lavando a outra !



J. Flávio Vieira

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