Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

sábado, 30 de outubro de 2010

O Senhor e o Solado de Sapato - José do Vale Pinheiro Feitosa

Tudo neste mundo se diferencia. Eis que o nosso panorama seja tão rico.

Um senhor, dado a chistes, querendo um cruzado no adversário, já foi presidente da república do Brasil e diz que mudou a história do país. Não mudou no essencial, mas o grande enredo do papel do Estado Nacional e dos mais pobres.

Ao final do seu mandato as famílias ricas estavam mais bilionárias e os pobres uma pobreza que nem imaginavam. Este senhor quebrou o país algumas vezes e recebeu alguns cheques do amigo do Norte para descontar na praça. E se foi e os avalistas, os brasileiros, pagaram a conta.

O solado do sapato desse senhor se fricciona ao solo que pisa. Acostumou-se aos tapetes macios, aos passos silenciosos, como um anjo flutuando nas nuvens. Ontem se arrastou no piso de um hotel de luxo, carregando o senhor para uma palestra a investidores estrangeiros antecipando a fatura que o seu candidato entregará.

É solado bem conservado. Apenas tem de se atritar ao solo algumas horas do dia. Antigamente eram mais do que 14 horas das 24 que os pés do senhor tinham. Hoje se esqueceram do senhor, a aventura dos ávidos por poder se encontra em penumbra. O solado adormece no sapateiro como um gato de madame.

Mas o candidato do senhor se desmaterializou do original. Gira como biruta em vendaval. E chamaram o senhor para uma caminhada no áspero das ruas. No solo que mendigos adormecem, ali onde o crack é fumado. Tem nomes de causar suspiros aos brasileiros: viaduto do Chá, Vale do Anhaganbaú. E o senhor a salvar o mundo com os passos no indesejado espinho em que se arranham os pobres.

E o solado é o espelho do dono. Nem bem alguns cumprimentos dos políticos acima do chão. Passos no sofrimento do piso irregular. Dos buracos da prefeitura, das poças de águas impermeáveis do solo, no cocô dos cães, no lodo do mijo dos mendigos. O solado desempenhava o papel pior a que seu senhor se sujeitara.

E se foi. O solado não suportou a dor da humilhação. Separou-se do sapato e se fingiu de morto numa quina de paralelepípedo. O senhor horrorizado com aquele fujão das horas amargas, também se foi. Havia um motivo superior, não ajudaria a vitória se aparecesse na televisão mancando pela diferença de nível.

E se despediu com seu modo de repetir as frases em sinal de “touché” aos que lhe incomodam: já ganhou! Já ganhou! Já ganhou! Já! Já!

E apascentou-se do calor e das ruas fétidas no ar condicionado da sua carruagem macia.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Luiz Carlos Salatiel - Emerson Monteiro

Ele, um desses iguais personagens advindos nas asas da ficção do Cariri, Luiz Carlos Salatiel. Surgido nesse mundo fantástico das terreiradas mágicas do chão nacional dos ancestrais, Luiz invade o salão das festas populares também para movimentar em si próprio a cena luminosa do hemisfério oriental de músicas, artes plásticas, literaturas. Arauto da alegria, sacode maracás do ritual dos caboclos desde tempos atrás, aos turnos dos festivais da canção do Parque Municipal a salões de arte e outras manifestações paralelas.
Depois, dormir ouvindo Luiz entrevistar os mestres Aldeni e Isabel, do Reisado da Vila Lobo, no programa Cariri Encantado da Rádio Educadora, fala de sonhos e viagens a universos da mística fundamental. Mergulhar às raízes da cultura nordestina, fincadas nos alpendres e solos medievais da Península Ibérica, patamares da tradição imorredoura que desfila atores altivos dos grupos de brincantes sob o comando de certos capitães alencarinos. Um tropel de cavaleiros andantes de armaduras luminosas, que percorre praças dos reinos transcendentais, defensores perpétuos de lendas e mitos, cantigas e naus catarinetas varridas ao vento de luas e castelos eternos, sombras rebrilhantes escorrendo nos prados verdes dos torneios, clarins, alazões pendoados e lanças coloridas.
Ainda que mais pretendesse contar das possibilidades impossíveis, falar das peripécias desse personagem ocuparia vasilhas enormes. Bom caráter, atípico, animador, surpreendente, cigano do inesperado, Luiz Carlos reúne vários Luiz Carlos Salatiel de Alencar num só Luiz Carlos. As paredes das programações individuais radiofônicas forçariam reservas para contê-lo num único projeto pessoal sem maiores resultados que dissessem quanto ele representa para nós em termos de artista incansável, paladino das lutas pelos valores infinitos da melhor inspiração.
Veja bem, o conteúdo criativo nesse audaz cavaleiro queima de intensidade o papel dos saltimbancos fellinianos, tipo móvel que brotou no Cariri e escreve, com seu itinerário, parábolas, pautas e andanças incríveis, códigos arcaicos nas encostas circulares da Serra. Viajou longe pela aventura da vida e aqui retornou como ninguém aos feitos da história particular das sagas prodigiosas, em versões assemelhadas às epopéias que reaviva nos roteiros das estradas de gado rompidas na lauta conquista dos sertões, pela Casa da Torre de Garcia D’Ávila.
Antes, há pouco, soube o quanto o repertório de palavras da pessoa acaba devendo para rabiscar com propriedade as contribuições de cada instrumento isolado ao conjunto harmonioso das orquestras. A pena traz dali, ajunta daqui, concentra esforços e nada. Bom, tudo isto na gravação de um comentário dos feitos notáveis de Luiz Carlos Salatiel sempre no propósito de acondicionar para o futuro os frutos culturais da nossa gente.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O novo livro de Daniel Walker - Emerson Monteiro

Será hoje (28 de outubro de 2010), às 20h, no Hotel Verdes Vales, em Juazeiro do Norte, o lançamento do livro História da Independência de Juazeiro, escrito por Daniel Walker, uma obra que reúne os principais elementos a propósito do marcante acontecimento de 100 anos, fator preponderante na formação do Cariri da atualidade. Composta de ilustrações fotográficas raras e valiosas, vem recheada de achados biográficos, depoimentos, citações jornalísticas e narrativas reveladoras, o que, decerto, enriquecerá sobremaneira o vasto acervo até aqui consolidado.
Daniel Walker compõe o elenco dos escritores da forte literatura caririense responsável pela preservação do acervo da história social deste lugar. Ao lado de outros quais Geraldo Menezes Barbosa, Napoleão Tavares Neves, Padre Antônio Gomes de Araújo, Raimundo Araújo, Renato Casimiro, Otacílio Anselmo, Nertan Macedo, J. de Figueiredo Filho, Armando Lopes Rafael, Raimundo de Oliveira Borges, Joaryvar Macedo e outros de inestimável valia, forma o grupo responsável pela composição da nossa historiografia, dentro dos moldes técnicos da pesquisa acadêmica, concedendo à posteridade acervo fundamental à interpretação dos fenômenos determinantes destes séculos mais recentes, as bases da nossa civilização interiorana. Pelas mãos desses autores, encetadas em suas produções criteriosas, desfilam, pois, peças imprescindíveis para a formulação da realidade histórica regional.
Nascido em Juazeiro do Norte em 06 de setembro de 1947, desde jovem Daniel se volta às lides jornalísticas e literárias, redigindo com intensidade também para o rádio e para a imprensa escrita de Fortaleza, correspondente que foi de vários jornais da capital do Estado.
Junto à Universidade Regional do Cariri exerceu o magistério, a pesquisa, e dedicou-se aos estudos da história juazeirense, publicando diversos trabalhos consagrados sobre a vida de Padre Cícero Romão Batista, além de outros de cunho didático-pedagógico e de temas da sua área de formação universitária, a biologia, graduado em História Natural pela Faculdade de Filosofia do Crato, com especialização em Ciências, pela Universidade Federal do Ceará.
Dentre as fontes analisadas por Daniel Walker para a contextualização do material que ora oferece ao público está a coleção do jornal O Rebate, órgão fundamental para a fermentação das ideias da independência do Juazeiro e para a formação institucional do município posterior. Em vista da importância do conteúdo de O Rebate, a comissão responsável pelo centenário juazeirense cuidou de resgatar toda a coleção, em edições fac-similadas.
Assim, o trabalho independente, realizado pela gráfica HB, de Juazeiro do Norte, é uma bem cuidada edição de 196 páginas, que visa homenagear o município por ocasião do centenário, porquanto, em 22 de julho de 1911, se dera a sua emancipação política, antecedida das movimentações que busca com zelo e honesta preocupação oferecer subsídios a futuras investigações.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Cidadania de resultado - Emerson Monteiro

Aqui vamos nós a colar os pensamentos no ato da escrita. Querer agora falar nos direitos da cidadania. Lembrar que houve tempo, de um Brasil recente, quando quase ninguém sabia disso. Apenas longos tapetes voadores circulavam o céu, caturando lugar nas praças, reclamando pista de pouso. Numa enxurrada só, em menos de um século, vieram morar no chão nacional os direitos da cidadania. Direitos civis, políticos e sociais.
Ao cidadão completo, os direitos civis significam os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. A garantia de ir e vir, de escolher trabalho, manifestar o pensamento, de se organizar, ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de só ser preso pela autoridade competente e de acordo com as leis, de só ser condenando mediante o devido processo legal. São civis os direitos que têm por base uma justiça independente, eficiente, barata e a todos acessível.
Os direitos políticos, ao seu modo, representam a participação do cidadão no governo da sociedade. A base dos direitos políticos são os partidos e um parlamento livre e representativo.
E os direitos sociais, que garantem a participação do cidadão na riqueza coletiva por meio da educação, do trabalho, do salário justo, da saúde e da aposentadoria. Permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir bem-estar mínimo. A ideia central que estrutura os direitos sociais é a justiça social.
Assim, mediante tão belas concepções filosóficas, as sociedades ocidentais letradas desenvolveram e praticaram os postulados estabelecidos no Iluminismo, e trouxeram ao poder dos estados modernos o ânimo forte das recentes constituições nacionais.
Contudo há os beneficiários da tanta luz da cidadania que, na contramão dos movimentos, estendem os braços e abrem as bocas quase só visualizando o egoísmo. Se há direitos, lhes pertencem por esperteza e dominação. Melhores estradas, melhores colégios, melhores manicômios judiciários, pistas pintadas, sinais funcionando, máquinas azeitadas e sofisticadas, repartições a todo vapor, no entanto para si e para os seus, totalitarismo de ocasião de causar náuseas e dó naqueles que ocupem a rabada nas filas, contrariedade pela ausência de cerimônia com que esses barriga cheia invadem a passarela, na intenção de comer a rifa da primeira garfada, esquecidos que sem direitos coletivos não existiria cidadania.
Isso assusta a ponto de aventarem até o pretexto de existir cidadãos de primeiras e segundas classes, absurdo de não ter tamanho. Mediante todas as conquistas da cidadania, cada cidadão preenche patamar único diante da soberania das leis. Esta grandeza representa, pois, os direitos que pertencem ao povo, livre de sobras ou contrapesos, primado de lutas e conquistas obtidas no decorrer de longos séculos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Esses rejeitados suburbanos - Emerson Monteiro

Segunda-feira, 25 de outubro de 2010. As estatísticas da Grande Fortaleza dão conta da cifra de 21 homicídios durante o final de semana que passou. Algo alarmante para época de paz social. Números atípicos de um mundo injusto. Enquanto que seres humanos da mesma civilização ocidental circulam silenciosos pelas avenidas, ruas e praças, qual se nada acontecesse além dos programas sensacionalistas, próprios dos horários do almoço da classe média com isso preocupada.
Ninguém nasce marginal e a sociedade transforma seus herdeiros em monstros aterrorizadores pecaminosos, armados até os dentes, raquíticos, tatuados, esqueléticos, olhos fundos, feições agressivas, usuários e traficantes de drogas, menores infratores, protagonistas de boletins e ocorrências, algarismos arábicos, denunciados pelo sofrimento de mães desesperadas, aflitas, filhos sem pais, reconhecidos de apelidos torpes, xingados, sobejos da mídia e menores enjeitados da sorte oficial. Uma sanha grita aos quatro ventos, do alto dos morros e linhas vermelhas do desencanto, o arrepio dos poderosos que, ano após ano, se sucedem juntos de tronos bem conservados. Desempregados, subempregados, informais consumidores crônicos de crack, pixotes versados na ordem seletiva de magnatas e políticos trajando grifes cativantes, frutos podres das tecnocracias de conveniência, dentes cariados de regimes e práticas.
Vez em quando surgem idealistas que protestam de cartilhas em punho. Reclamam para esses rejeitados suburbanos das periferias sociais, assassinados, exterminados de si mesmos. Programam políticas públicas que pretendem encampar os déficits nos projetos futuros, que se arrastam nas marcas tortas da distribuição de renda.
Quando calarmos, até as pedras clamarão... Independente das providências paliativas, dos reforços de efetivos, mais armas e munições, guerra surda se instalou nos becos e terrenos vazios, nas distantes favelas e nos córregos poluídos, de zumbis à procura da lua. Tropel silencioso percorre guetos, exército surreal de nossos irmãos, sobrinhos, filhos nossos, soldados desconhecidos no orçamento, esfaqueados, fuzilados, triturados, fora dos olhos das câmeras e dos quadrantes da caridade pública, desassistidos da ganância, raça da nossa raça, ainda imberbes, sangue do nosso sangue, negros, pardos, índios, prostitutas, alcoólatras, dependentes químicos, que perderam o bonde da história desde o berço e a inocência criminal desde a primeira infância, ou ainda no útero materno, largados nos lixões da glória do mundo... Caldo grosso da mesma humanidade escore fétido de cães e muralhas, estádios e edifícios acrílicos faiscantes, abortos largados sob as marquises, nos mangues, canteiros e viadutos, bandidos da economia de escala... Enquanto isso, balas perdidas ricocheteiam criminosas pelas copas das árvores, nas calçadas da fama e veias solitárias dos aidéticos degenerados...
Quem, pois, pranteará a verdade dos tantos perdidos na mocidade em flor, atirados quentes às estatísticas mornas deste tempo sem amor?

sábado, 23 de outubro de 2010

Eleição pegada - Emerson Monteiro

Afinal, nesta madrugada de 22 de outubro de 2010, veio a esperada chuva do caju, em forma de neblina grossa, que sustentará a florada dos cajueiros e mangueiras, alento bem recebido pelo mundo sertanejo. Acordar ao som das águas caindo nas biqueiras envolve os sonhos, traz alegria e alívio às temperaturas elevadas, acomoda o pó nas estradas, alimentando plantas e bichos. Estiagem desde março, tudo muda com as chuvas. A quadra seca dos últimos meses do ano costuma levantar os olhares dos caboclos às nuvens, acompanhando de perto os confortos da natureza.
Enquanto isto, a vida civil segue seu curso nas várias frentes e ações. Ano eleitoral. Será o segundo turno para presidente no País, e governador em alguns estados. Movimento por demais intenso, acrescenta calor à expectativa, sobretudo com relação ao destino das políticas públicas iniciadas no atual governo. A relativa proximidade nos números do candidato José Serra, do PSDB, com relação aos da primeira situada, Dilma Rousseff, do PT, sugere um pleito pegado até a hora da apuração.
A menos de dez dias da votação, recrudesceram os ânimos das militâncias e opiniões vêm à tona com maior intensidade. Nestas eleições, a Rede Internacional de Computadores (Internet) revelou face antes encoberta da informação, apresentando aspectos diferentes de vídeos, declarações e artigos, numa proporção maior do que nas outras eleições.
O aguçamento das paixões transborda nas atitudes escapam ao domínio tradicional das eleições anteriores, quero crer, porém os riscos da liberdade na escolha dos representantes guardam estreita relação com a verdade e o amadurecimento dos costumes. No caso brasileiro, quase ainda só percorremos o período da adolescência institucional, devido às interrupções sucessivas no curso dos acontecimentos, quase vivendo a fase da experimentação inicial das práticas necessárias. Países mais antigos contam mais de 500 anos de maturidade constitucional, e assim buscam a todo preço garantir valores por vezes ameaçados e sacudidos nos turnos eleitorais.
Querem-se melhorar as escolhas, porém, no dizer do povo, ninguém traz estrela na testa para mostrar o que fará no futuro e quais atitudes adotarão no exercício do poder. Projetos sociais merecem destaques nos programas dos candidatos, sem garantia de certezas absolutas na hora do exercício do mandato. Áreas essenciais, saúde, educação, trabalho, moradia, segurança, significam respeito pela população, paz e desenvolvimento.
Estas lições, se aprendidas e demonstradas, exigem honestidade dos governantes e manutenção das promessas, na vida comunitária. Autoridades devem agir com correção, sobretudo no uso do dinheiro do povo, bem sagrado e escasso. Um homem público se acha, portanto, sob os olhos da multidão. Ninguém vive isolado acima do bem e do mal. Este mundo contraditório reclama de coerência e sabedoria na seleção dos comandos, para a conquista real da justiça em épocas de aprimoramento.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Deuses falsificados - Emerson Monteiro

Essa velocidade com que vêm oferecidos os produtos da indústria, do comércio e das imaginações em alta voltagem, neste tempo dagora, ocasiona reações internas esquisitas nas pessoas. O ritmo vertiginoso produz ídolos e lota altares nas mentes, transformando religiosidade natural em apego de fantasias ocasionais das épocas ilusórias.
Para onde se voltar, um fantoche aguarda com dentes amolados os espectadores desavisados da humana comédia. Postiças estatuetas de bronze enxameiam nas telas e prateleiras de um carrossel hipnótico grosseiro. Desde os cravos das ferraduras aos penteados exóticos, os pretensiosos seres da espécie deitam e rolam embriagados, nos canteiros das praças e matas dos lugares, alheios às verdades superiores que nasceriam de cada consciência sinceros fossem.
A tal idolatria corresponde aos vícios. Bebidas, refrigerantes gasosos, comprimidos, cigarros, pó e alimentos excitantes, constrangem o corpo, invadem mercantis e lojas, danificam as engrenagens originais da natureza e multiplicam os atendimentos médicos insuficientes dos postos de saúde. Apelos visuais apressados, poluição de não ter tamanho nem respeito à paisagem, que apenas resiste, coberta de sacos plásticos derramados ao vento, nos momentos mais inconvenientes das fotografias desfocadas. A mão do homem tinta de cinza o quadro maravilhoso do céu, agora de pálidos neons, lotado de painéis melados de óleo e graxa, ícones dedicados aos deuses de motores e máquinas trepidantes. Isto sem falar nas paixões enebriantes dos esportes radicais. O próprio futebol das jogadas geniais resume-se hoje em coices e pernadas violentas, afã dos times de chegar na cabeça das chaves suadas dos campeonatos, corridas estafantes e dramáticas das taças de plástico a lágrimas desencantadas. E os deuses da guerra e suas macaquices ideologias, doutrinas falsificadas ao sabor dos senhores das armas e munições. Lembrar os metais reluzentes das lanchas nesse mar de volkswagens em que se reverteram as cidades, escolas neuróticas de sobreviventes apavorados.
Ah, esses deuses artificiais de um mundo das massas... A quem rezar nossos credos? Onde depositar nossas apreensões, nos tempos da desobediência? Para seguir caminhando, eis quantos caminhos andar livres das armadilhas do vício, de ilusões dos bônus e ofertas, brindes e ardis, no passo monótono de pesados camelos arrastados nas fitas envelhecidas de corujões e madrugadas.
Seguir, no entanto, rebanhos do destino que nós somos, artífices da perfeição... Pisar com cuidado lamas e atoleiros, olhos abertos ao Deus verdadeiro que reside no certo das certezas, profetas soberanos dos endereços da Luz, autores dos astros e das existências eternas imperecíveis. Saber, no entanto, afastar o joio do trigo e desejar para sempre o melhor em tudo.

O Boi botou em Mestre Alfredo


Debruço-me, frequentemente, sobre uma coleção de fotografias antigas que coleciono há muitos anos. As fotos todas me parecem muito familiares, como se houvesse já bebido aquelas paisagens, convivido com aqueles transeuntes. Não fosse o incréu que sou, imaginaria ser um fenômeno de Dèjá Vu, algo explicável nos meandros de outras encarnações, nas páginas do Budismo, do Candomblé, do Kardecismo. Dia desses fitei uma que mostrava o nosso Cassino Sul Americano, aí pelos idos da década 20 do século passado, captada pelas lentes mágicas de Pedro Maia. Nela percebi as ondas inexoráveis e devastadoras do tempo, tudo se transmutara: A paisagem, as pessoas, o vestuário, os filmes, até o cinema; tudo havia sido engolido pelas moendas das horas , dos minutos, dos segundos. Junto, percebi, se transformaram também os costumes, a moral, os hábitos, as verdades. Como se a vida fosse uma grande peça de teatro, em que, ato após ato, se trocam o figurino, o cenário, os atores, a platéia, a música, a iluminação, a dramaturgia. Só o script , no fundo, é o mesmo : uma tragicomédia onde se embatem num vendaval de ilusões: esperanças, aspirações, vaidades, interesses, torpezas; tudo encenado à beira do abismo. Em pouco, cai a cortina e tudo recomeça.

Tudo neste mundo está submetido ao crivo afunilado da ampulheta. Tudo é efêmero, etéreo, transitório. A roupa mais linda e deslumbrante que vestimos hoje é a cafonice de amanhã. A verdade mais cristalina de agora será a mentira deslavada da aurora seguinte. O certo-errado, o ético-criminoso, o santo-profano, o belo-feio, a virtude-pecado precisam ser cuidadosamente datados. A beleza feminina no Século XIX apresentava-se como uma figura de Botero, hoje como a noiva do marinheiro Popeye: a Olívia Palito. A virgindade, antes de ontem adorada como top de linha, hoje se cadastra nos livros do IBAMA. Zeus e Júpiter há poucos séculos deuses furiosos e de poder incomensurável, agora dormem placidamente nos livros de Mitologia. Tudo muda, tudo passa, as coisas são fluidas e escorrem para o ralo do tempo, sem que ao menos demos conta disso.

Assim também são as palavras. Elas envelhecem e ficam caducas como as pessoas que as pronunciam. Expressões tão significativas outrora como : “Furado que só tábua de Pirulito”; “Mais lascado que pauzinho de rolete”; “Tremendo mais que Toyota em ponto Morto”, “ Mais melado que balcão de Correio”... quem diabos mais sabe o que é isto nas novas gerações? Rolete, Tábua de Pirulito, Ponto Morto ? E os Correios agora se melam por outras causas. Há poucos anos , quando uma pessoa entendia por fim uma situação qualquer, dizia : “ Ah, agora caiu a ficha!” Era uma referência às fichas utilizadas nos orelhões, agora já comandados pelos cartões telefônicos.

Aqui no Cariri, existiam muitas expressões nossas : “Botou, como o Boi botou em Mestre Alfredo!” ;”Eu sou como pequi verde, não abro de jeito nenhum!”; “Mais conhecido que arrastado de penico”; “Mais desmantelado que o PTB de Nova Olinda”. Pois é : O tempo botou em Mestre Alfredo sem nenhuma pena, aposentou o penico e o seu arrastado, abriu o pequi em banda e desmantelou definitivamente o já desmantelado PTB da terra do Mestre Expedito do Couro.

A imagem que se vê hoje projetada é apenas a realidade momentânea, uma pequeníssima amostra de uma infinitude de outras que se sucederão. Suas crenças, seus valores, suas verdades são apenas grãos num celeiro de possibilidades universais. Só existe uma coisa perfeitamente imutável neste mundo : a Mudança.

J. Flávio Vieira

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Um exemplo de mãe - Emerson Monteiro

Vemo-nos, em determinados momentos, sob a condição inevitável de testemunhar nos gestos das outras pessoas o que significam as virtudes sonhadas que muitos reclamam uns dos outros, para uma melhor classificação dos padrões humanos da excelência. Há como que disposição comum de exigir e nivelar por baixo os comportamentos, espécie de pessimismo crônico em face das dificuldades naturais do dia-a-dia. Seriam as justificativas da acomodação, se pode até mesmo dizer. Ainda assim, casos raros de extrema qualidade, no entanto, persistirão acontecendo, mundo afora.
Eu conhecera Mirtes Cordeiro durante visita que lhe fiz em campanha política de alguns anos atrás. Amiga de Luiziane, uma das minhas irmãs, ela me recebeu com alegria nas dependências do salão de beleza de sua propriedade, no Conjunto Novo Crato. Desde logo, com ela e seu esposo, Vilemar, mantive boa amizade. Um casal preocupado sobretudo com o destino de um filho que estudava em São Luiz, no Maranhão. Noutras ocasiões em que voltei a lhes encontrar, vi que a educação do filho sempre predominava entre os assuntos de interesse.
Sei bem que Mirtes transformara o sucesso do filho no sonho principal da família, em tudo por tudo. Esforçados nas lides cratenses, os pais acompanhavam à distância o encaminhamento do jovem, que escolhera a odontologia para graduação acadêmica. De Crato, Mirtes seguia e mantinha os tais estudos graças ao empenho de todos da família, o que mais adiante produziria resultados meritórios.
Na derradeira vez em que nos vimos, rápidos instantes no centro de Crato, Mirtes relatou seus planos de mudança para a capital maranhense, narrando o quanto custara de trabalho e preocupação a feliz educação do filho, incluindo o planejamento da mudança para mais perto dele, pois pretendia auxiliá-lo no início da profissão seguindo o caminho que abraçara.
E agora (18 de outubro de 2010) recebo a notícia de que, viajando para São Luiz, numa rodovia do Piauí, Mirtes Cordeiro sofreu acidente automobilístico fatal.
Nessa hora passou-me nas trilhas da lembrança o carinho de Mirtes para com o filho, a disposição constante querendo reunir os meios de mantê-lo estudando fora, as cartas que dirigiu às autoridades encarecendo recursos para a iniciativa, o que, sem qualquer dúvida, significou ponto de honra de uma vida inteira.
Sentimento forte de admiração e nostalgia evidenciou-se na figura daquela mãe afetuosa, recordando quando escutava a respeito dos seus cuidados e projetos que estabeleceram a nova história do filho, qual se outra meta não houvesse além disso para justificar os dias que lhe restavam antes de deixar este chão.
Com isso, aqui registro em um breve comentário o que presenciei desta personalidade simples que desaparece num piscar de olhos, anônima entre tantos que transmutam no amor aos filhos a razão maior do existir, pela magnânima vontade humana das suas realizações pessoais.

sábado, 16 de outubro de 2010

Os Velhinos Transviados - José do Vale Pinheiro Feitosa

Parei a camionete Chevrolet, 1962, duas boléias, pára-lamas, teto e detalhes da carroceria verdes com todo o resto branco. A vaga na frente do número 114 da Rua João Pessoa. Para os padrões rurais a rua estava muito iluminada, mas nada comparável à intensidade de diamante da Praça Siqueira Campos, com o Cine Cassino, o Café Crato e a Sorveteria de Bantim. Tudo isso a dar palco aos passos de saltos altos daquelas meninas eternas a furar meu coração apaixonado. Naquela noite na casa de Conceição Romão uma tertúlia ao som de um toca discos.

A noite inteira ao ritmo dos “Velhinhos Transviados” e o som universal de sua orquestração só para dançar, tocar-se e se tornar um mar agitado. Os cheiros de cinema das meninas, como a nos conduzir pela ponta do lobo frontal feito uma lobotomia. E maior contramão ali acontecia: um furor pela conclusão das sugestões simultaneamente à sujeição da vontade delas. Só quando casar.

Os “Velhinhos Transviados” mandavam brasa: Huly Gully Baby; Calhambeque; Limbo Rock; SanFrancisco; Les Comichons; Anjo Azul; Quando entre tantos LPs. Tome música nas noites de sábado. E quem era o líder dos Velhinhos? Nada menos que o guitarrista Zé Menezes nascido em Jardim e que começou a vida artística em Juazeiro do Norte, aos oito anos de idade apresentando-se para o Padre Cícero. Aos onze era músico da Banda Municipal de Juazeiro.

Como era do tempo de busca, da aventura vai para Fortaleza e vive como radialista num serviço de alto-falantes. Retorna a Juazeiro e no início das escaramuças da segunda guerra mundial e do aumento da influência americana, o primo Luís Rosi se torna líder de uma banda de Jazz e Zé Menezes o acompanha, inclusive tentando Fortaleza pela segunda vez. Ali aprende o ofício de Alfaiate. No início dos anos 40 é contratado como segundo violonista da orquestra da Ceará Rádio Clube de onde formou um regional próprio para tocar na emissora durante quatro anos.

O famoso radialista César Ladeira o conhece e o contrata para a Rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro. Em 1945 formou o "Conjunto Milionários do Ritmo" que muita gente ainda hoje lembra. A partir de 1947 fica 25 anos na Rádio Nacional, parte do tempo ao lado de Garoto no programa "Nada além de dois minutos". Em 1948 compõe o primeiro sucesso, o samba "Nova Ilusão" (em parceria com Luiz Bittencourt) e grava com o grupo "Os Cariocas". Em 1950 o choro "Sereno", com Luiz Bittencourt foi gravado por Chiquinho do Acordeom. Grava solos ao violão tenor e os choros compostos com Luiz Bittencourt. Em 1951, grava o baião "Não interessa não" e o choro "Vitorioso", com Luiz Bittencourt. Continua gravando na década, inclusive faz um solo de violão elétrico do samba "Copacabana", de João de Barros e Alberto Ribeiro, e a valsa "Um domingo no Jardim de Alah". É dele o famoso samba "Tudo azul", com Luiz Bittencourt lançado pelo grupo vocal “As Moreninhas”.

E Zé Menezes continuou operando música com os gênios dos anos 50 e 60 e gravando discos com seu grupo. "Os Velhinhos Transviados", surgem em 1962 com "Nós os carecas", "Pierrot apaixonado", "Fica comigo esta noite", "Chuá, chuá", "Bossa nova", entre outras músicas. No mesmo ano lança o segundo LP "Os Velhinhos Transviados - Sensacionais". Em 1963, os LPs "Os Velhinhos Transviados - Fabulosos" e "Os Velhinhos Transviados - Espetaculares". Em 1964, no LP "Os Velhinhos Transviados - Bárbaros!", chegando ao "Mas, que nada", de Jorge Bem; "Louco", "Rio", de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. Os Velhinhos Transviados renderam 13 LPs.

E após aquela lobotomia na minha esquizofrenia entre atacar e me apascentar, turvo de conflito, esgotado do irrealizado sugerido por elas, desço pela Miguel Lima Verde, é demais e seus azulejos no futuro assassinados. A camioneta tinha motor de arranque: um pedal no lado direito do acelerador para juntar as duas funções: ignição e alimentação. E logo eu com aqueles símbolos aos meus pés. Eu que fora ingnificado, mas não alimentado.

Fui me agasalhar no manto escuro da estrada rural. Passando a ponte velha, chegando à porta da garagem apenas com as lanternas da camionete para iluminar. Guardo o carro, abro a porta, vou ao quarto e deito-me. Com elas nos meus braços ao menos dando curso às minhas forças transviadas.

Numa tarde morna de outubro - Emerson Monteiro

As palavras escorrem feitas longas lavas aquecidas de vulcão pelas frestas livres de pensamentos flutuantes que se deixam transcorrer, e insistem fogosas a vadiar nos campos reluzentes intensos dos blocos de sombras claras, nas folhas secas espalhadas em solos convidativos de formações superpostas, céu azul de tarde informe, infinita. Vão e vêm aos gestos matemáticos astutos dos caçadores armados até os dentes em cada esquina silenciosa do aberto firmamento que lhes invade o mistério, rasgando sem pudor a veste suave das cores mil da imaginação impaciente.
Estrelas penetram esse teto cor de rosa das antigas telhas, no sótão da casa velha, numa cidade abandonada, daí descem impávidas através das réstias fulgurantes, quais poemas alados, sentimentos impossíveis de formas e gentes, que percorrem corações, pulmões, artérias, e sacodem ao som dos acordes circunstanciais de saudades irremovíveis, sobreviventes à retina do sonâmbulo que passeia entre as pedras super aquecidas, no fulgor dos sóis ilimitados.
Quase gosto de rever a sensação da véspera, de um sonho interno consistente. Feliz amabilidade se estabelecera no interior das fibras do ser e mergulhara enervada antes/durante/depois. Força prudente de quem chega para sempre permanece agarrada nas tetas instintivas do corpo, formando grotas fundas do domínio. Luzes escorregadias, invasoras de células, revelaram o mesmo destino. Garras convergentes, açoites e fogos exóticos das supremas elevações e trens velozes riscaram nos ares faíscas e ritmos frenéticos bem perto das espirais constantes vitais.
Quantas vezes passadas aqui as perguntas redivivas e reais, blocos sólidos voando geométricos sobre feras descuidadas reunidas ao sabor das palavras de ordem espedaçadas nos poemas e amealhadas às pressas nas barracas das feiras, pregões doces desprendidos de portas arregaçadas pelo vento enovelado de chamas cinzas.
Inúteis pinceladas riscam, pois, sortilégios nos muros enegrecidos, garagens inesperadas e pontes. Letras e outros sinais entregaram suas asas indiferentes ao sopro da brisa, na espera das redes que cativem e conduzam, no burburinho dos versos. Bichos de goma arábica, marfim e flandres, móbiles tilintando ao suspiro das garças divertidas chilreando voos em gargalhadas juvenis propagadas no espelho das águas lá longe, ponto de fuga extenso do quadro vespertino.
Que mais querer senão emoldurar as notas cristalinas do espetáculo translúcido da tarde em forma de olhares para dentro e ver dentro ainda mais...

O futuro dos filhos - Emerson Monteiro

Desde cedo que a atenção dos pais se volta para o encaminhamento dos seus filhos. Pouco importa a condição da família, o sonho do sucesso futuro dos filhos ocupa sempre espaço de prioridade número um, isto em todas as épocas e todos os lugares. O amor acendrado pelos descendentes significa a razão da humanidade prosseguir, apesar das imensas contradições e deficiências nos outros campos da atividade coletiva.
Desde cedo que um movimento natural dos genitores encaminha o filho, sobretudo naquilo que diz respeito aos meios de sobreviver. Neste processo por vezes angustiante e incerto, os que já desenvolveram uma profissão buscam repassá-la aos que demonstram interesse em seguir, quando outros recursos melhores estejam fora de cogitação.
O seguimento das raças dá notícias da criação das primeiras escolas bem nos inícios da organização de vida na Terra. Estabeleceram os aparelhos de formação das novas gerações através da educação formal. Nos liceus de artes e ofícios da Idade Média, a preparação dos jovens atendia necessidades sociais e conduzia aos passos iniciais, sementes das futuras instituições universitárias que agora dominam a ciência e a técnica. Na atualidade, tempos de muitas formas dessa fase industrial-tecnológica, a complexidade toma conta dos mercados e as profissões cresceram quase ao infinito. E nesse quadro misterioso deságuam as apreensões dos pais em relação ao engajamento de seus filhos no universo do trabalho. No entanto as limitações da pirâmide social selecionam só pequena margem de eleitos e restringem os demais, tornando a escola o funil discriminatório da ordem oficial.
Fórmulas prontas não existem para a educação, dizem os especialistas do assunto. Cada caso é um caso. Métodos funcionam ou deixam de funcionar, ao sabor do talento e das pessoas. A exigência de sensibilidade e vocação dos professores e responsáveis responde pela condução dessa valiosa arte de educar.
Além disso, existem as armadilhas onde os maus instintos sujeitam os jovens a prejuízos descomunais, quando fatores negativos invadem a cena. Influências perversas dos desvios sociais nascem da violência, da droga, da desonestidade, maus exemplos, baixa escolaridade, ensino público sucateado, alimentação deficiente, distâncias, e outras atrapalhações mais.
No que pesem os governos haverem notado o valor da formação profissional desde o ensino médio, a grande população ainda passa longe de receber as benesses da nova política. Dentro disso tudo, o fator interesse do filho representa parcela fundamental no seu futuro, investindo tempo e saúde no querer para si os frutos dos seus esforços e tendências, auxílio precioso ao que podem fazer os governantes e pais para a sua felicidade.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Heróico Resgate do Poço do Sabugo

Taí! Digam agora que não há possibilidade de consenso em Matozinho! Perguntem a qualquer guri, em beira de rua, qual a página mais dramática na história da vila e dou minha cara a bofete, se a resposta não for única e inequívoca: O Desmoronamento do Poço do Sabugo. O episódio se passara muitos anos atrás, mas a tragédia havia sido perpetuada, geração após geração, pela aguçada língua do povo. E, claro, como em toda história oficial ou oficiosa, o fato foi ganhando novos matizes, novos temperos com o fito de a especiaria ir se tornando mais palatável, mais adaptada aos mutáveis mistérios desta espécie de culinária. A versão que escolhemos nos foi narrada pelo velho Felinto Gomes, um cabra mais sério que fundo de touro, econômico de gestos e palavras, um homem muito mais propenso ao substantivo que ao adjetivo e advérbio. O leitor há de me interrogar se é esta a descrição mais confiável da história. Quem lá diabos é que sabe? Esta escolhi confiado no aval que Felinto me apresentou: um bigodão negro que lhe imprimia uma cara austera como se tivesse engolindo, a contragosto, um anum.
Tempos de seca tirana em Matozinho. Até menino chorava lágrimas liofilizadas. O prefeito Sinderval Bandeira andava com a moral mais baixa que diferencial de cururu. O açude do Sabugo há mais de dois meses que batera piaba. A Vila se via abastecida , a duras penas, por carros pipas que próprio filho do edil alugava à prefeitura. A água vinha de Bertioga: salobra e barrenta. Os matozenses reclamavam mais do que bode em dia de dilúvio . Bandeira, na tentativa de melhorar um pouco mais a popularidade, conseguiu, com o governador, a construção de um poço Amazonas. Imaginava que, se tudo desse certo conforme as previsões do marcador de cacimba, haveria condição se sanar o problema ao menos parcialmente. Corria o risco de ver o filho perdendo a boquinha, mas , por outro lado, quem sabe, semeava um pouco de esperança no povo. O próximo ano , não podia esquecer, era ano eleitoral.
A escavação começou em ritmo acelerado. Sinderval contratou Pedro Pebote e seus seis filhos e o pau comeu no centro. Os Pebotes tinham este estranho sobrenome e eram dados a um carteado e a uma caninha, mas trabalhavam com afinco. Em uma semana haviam aberto já um bueiro enorme. Desapareceram buraco adentro. A construção poderia até andar mais rápida, não fosse o terreno pedregoso e a necessidade de botar fogo em pedra várias vezes por dia. Os tiros se ouviam de longe e, se de início assombraram o povo, em pouco já faziam parte do cotidiano da vilazinha. Apenas um contratempo ocorreu: cavavam, cavavam e nada do veio d´água. Um dia, descidos mais de quarenta metros terra abaixo, finalmente a água brotou com facilidade para alegria de Quinca e dos seus Pebotes. Sinderval regozijou já contabilizando a futura colheita na boca da urna.
Os Pebotes iniciaram, então, a parte final do trabalho. O revestimento interno do cacimbão com tijolos, montados numa enorme manilha aposta, cuidadosamente, no fundo do poço. O ofício , de risco, mantinha os pedreiros e serventes suspensos por um andaime, controlado por um sistema precário de roldanas. Aparentemente a história vai chegando ao final, mas se faz mister abrir, antes um parêntesis.
Os Pebotes vinham recebendo semanalmente os seus proventos. Acontece que os Cangatis, que faziam oposição a Sinderval, levaram a Quinca, uma denúncia. A verba destinada à construção do poço, pelo estado, previa o triplo da mão de obra cobrada pela equipe e, pior, eles estavam assinando recibos, ingenuamente, como se percebessem o total da verba prevista. Descoberta a tramóia, os Pebotes se revoltaram. Avisaram, numa sexta-feira á tarde, que estavam parando as obras e que só voltariam ao trabalho se lhes fosse devolvido o roubado, e mais : iam espalhar a Bandalheira. Sinderval informou que houve um mal entendido , que fossem para casa, fechassem o bico. Ia resolver o problema.
À noite, não se sabe bem como, aconteceu a tragédia que marcou indelevelmente a história de Matozinho. Houve um acidente, o poço desmoronou em parte e, pior, os Pebotes estavam presos lá embaixo, nos escombros. A notícia se espalhou rápido e causou comoção na cidade. Neste preciso ponto as versões divergem sobremaneira. O que segue é pois apenas um dos ramos da mesma história: o ramo Felintiano.
Segundo Gomes, o desmoronamento, na verdade, ocorreu por mero acaso, mas , ao contrário do propalado por Sinderval, cedo da noite e, consequentemente, não havia ninguém no momento. O prefeito ao saber do ocorrido, mandou, na madrugada, buscar os Pebotes de urgência, avisou a suas famílias que iam trabalhar em hora extra e os esconderam na fazenda de Sinderval de forma incomunicável. Espalharam então a notícia do ocorrido e que iam tentar um resgate heróico daquelas operários tão queridos.
Em pouco, o açude do Sabugo encheu-se de uma multidão de curiosos. Armaram barracas negociando bebidas, meninos vendiam Dim-Dim e pirulito. Outros guris empinavam papagaio e jogavam peteca. Organizou-se, rapidamente, uma brigada de salvação. Conversa vai, conversa vem, preferiram cavar um poço paralelo ao outro para o resgate, uma vez que o original corria novos riscos de soterramento e não havia segurança suficiente para trabalhar dentro dele. Formou-se uma imensa galera na beira do poço pronta a dar pitacos e palpites e as apostas começaram a correr soltas: quantos dias até chegar lá; quantos sobreviventes; quem escapa dos Pebotes; a corda quebra ou não quebra. Sinderval, desde este dia , não saiu mais da boca do poço e chorava como um desalmado. Por mais de uma vez tiveram que dar palmatoradas em meninos que jogavam pedras dentro do poço e furaram a cabeça de mais de uns cinco socorristas. O Poço do Sabugo virou a grande atração de Matozinho. Passados uns dez dias, finalmente, a brigada informou que o novo poço tinha chegado na altura dos escombros. Sinderval marcou para o dia seguinte , a gloriosa data do resgate. Cuidou, no entanto, de fornecer na noite anterior, canadas e mais canadas de aguardente aos renitentes que vararam a noite. Lá para as três horas da manhã, toda a audiência já estava capotada, em volta do poço. A negociação já havia sido feito com os Pebotes, sob juras de silêncio obsequioso. Os pedreiros foram colocados, na madrugada, dentro do poço recém-escavado, sem que ninguém visse.
Pela manhã, então, na presença de quase toda cidade, deu-se o resgate milagroso. Desceram primeiro dois socorristas para ajudar na perigosa tarefa.A corda desceu, poço abaixo, e, como por milagre, um por um dos Pebotes foram retirados lá de dentro. Fora, um Sinderval banhado em lágrimas, abraçava a todos e amparava os familiares que urravam num misto de alegria e desespero. Não cabiam perguntas em meio a tanta felicidade. Como haviam sobrevivido embaixo d´água , sem comer? Como haviam passado de um poço para outro, se o segundo, por erro de cálculo, era bem mais raso do que o primeiro?
Após a saída dos Pebotes, Sinderval, num ato solene, lacrou definitivamente os dois poços. Fez isso mesmo sabendo que após o resgate os dois socorristas que mergulharam primeiro , não mais foram encontrados. Ficavam ali, selados, como um monumento à bravura indômita da gente de Matozinho : os que sobreviveram e os que se perderam no buraco. Como o povo tem mais sede de heróis do que de água, Sinderval foi eleito no ano seguinte com uma votação recorde. E foi desde este tempo que os pedreiros do Poço do Sabugo passaram a ser conhecidos pelo estranho sobrenome, dizem que batizados pelo velho Felinto Gomes : Pebote: uma mistura de peba com caçote.

J. Flávio Vieira

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Raízes da violência - Emerson Monteiro

Vive-se período extremo de criminalidade violenta, isso em todo o mundo, com ênfase nos países mais atrasados, dentre eles o Brasil e toda a América Latina. Antes, o motivo alegado se voltava para as revoluções, na época da chamada Guerra Fria.
Hoje, qualquer motivo preenche as justificativas das convulsões sociais, desde a delinquência juvenil ao tráfico de drogas, passando pelos bolsões de pobreza e guerras tribais, lutas raciais, onde o padrão da cultura indica descompasso, perversidade e miséria.
Houve tempo quando era mais fácil encontrar as razões da insegurança. O atraso das mentalidades, as conquistas coloniais, disputas imperialistas, domínio das terras, fanatismo religioso. Tudo servia de pretexto, no decantado anseio do homem lobo do próprio homem. Ou de querer a paz e se preparar para a guerra.
Acham as autoridades que o problema se revolverá mediante a ampliação dos órgãos de segurança, aquisição de armamentos, modernização e ampliação das penitenciárias, maior remuneração dos efetivos policiais, etc., etc.
Contudo a questão possui raízes mais profundas. Suas causas merecem detalhamento, porquanto procedem das origens, que acumulam estudos e pouquíssimo tratamento.
Conceitos de que falta educação ao povo e que a tradição nacional dos degredados, escravos e índios, sem amadurecimento suficiente, formaram país aleijado, por si não justificam a violência das ruas, o clima tenso em que se transformou o sonho urbano.
De suas causas mais evidentes cabe citar o desemprego, sem esperança de redução para a juventude, que, todo dia, chega ao mercado de trabalho. A excessiva concentração da riqueza nas mãos de poucos, há séculos donos de bens. E a pobreza infinita das massas alienadas pela educação burguesa.
Enquanto sofre a nacionalidade esse atraso crônico na moralidade e competência dos dirigentes responsáveis pela administração pública, em todos os segmentos eles jamais se comprometem com mudanças substanciais e inadiáveis.
Como se não bastassem ditas origens, persiste, na estrutura mundial, um conceito voltado aos interesses das nações ricas, que investem pesado na manutenção do poder através dos sistemas de exploração financeira. Gastam fortunas para técnicas de preservação dos territórios da ordem injusta.
Portanto, para neutralizar o clima superlativo desse drama, cabem atitudes aos que precisam se livrar das nuvens escuras dessa história reacionária, com criatividade, maior comprometimento e participação coletiva dos grupos prejudicados, união das classes exploradas e conscientização política.
Abrir o olho e enxergar que só a educação trará mudanças significativas, após os esforços da sociedade, que será instrumento da democracia através do voto consciente que fala alto neste assunto, desde que assim pretendam os eleitores, bola da vez na decisão de cada eleição.
A semântica da distração planta sono nas nossas mentes,
Deturpa os fatos, engana, fantasia, desvia.
Os hipnotizadores da televisão chamam os mineiros de heróis.
Aqueles mesmo de pele acobreada, da cara de Índio.

A mídia que empulha, que tergiversa, que serpenteia,
Nas circunvoluções dos nossos cérebros,
Não ouve a canção de Victor Jara:

"Con él, con él, con él, con él.
Son cinco minutos.
La vida es eterna en cinco minutos.
Suena la sirena.
De vuelta al trabajo y tœ caminando lo iluminas todo,
los cinco minutos te hacen florecer.”


Os mineiros do Chile não são heróis,
São mártires da ganância das mineradoras.
São vítimas da exploração que destrói gente,
Torna o deserto de Atacama num solo lunar.

De outra forma como um “herói” de 63 anos,
Desempregado, que necessita renda para sobreviver,
Permaneceu um buraco insalubre mesmo dizendo:
Aquela mina não é segura vou procurar outro emprego.

E quase vai! para o desespero de nossas indignações,
Buscar junto às asas do condor, como um Aimara nos Andes,
Sobre o torpor das consciências bêbadas de tanta mídia,
Que mija e caga na alma e muitos se acalmam como manjar.

É preciso que rebeldes construam uma “fênix” da liberdade,
Que se erga desta poeira ideológica que no pisam os comunicadores,
E da altura em que consiga voar,
Sopre para bem longe a névoa que turva a alma de todos.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Somos mais que nossos preços - José do Vale Pinheiro Feitosa

Frases da idiotice acusam alguém de não valer o preço que se atribui. É que a etiqueta é da mercadoria, apenas colocada no braço dos escravos do consumo

O pior comentário é aquele sobre algo do qual não se tem a referência. Falo de um final de filme que assisti estes dias com a Emma Thompson no papel e uma professora universitária com um câncer terminal. Não lembro o título. Está num destes canais a cabo.

As cenas que vi são um soco no estômago. De todos os modos de morrer o mais dramático e vivenciado é da doença crônica, especialmente o das neoplasias malignas. Doenças que desde o diagnóstico já condenam as pessoas à morte e que abrem uma expectativa de desespero, esperança e frustrações. O desespero do termo irremediável. A esperança de uma cura improvável, por vezes de fé, noutras alternativas e as não menos perversas dos “experimentos” científicos, além do pior de todos: aqueles para a máfia de branco ganhar dinheiro.

No filme, do momento que assisti, estava o diálogo da professora, uma grande erudita, a meditar sobre si mesma em face de sua erudição. Como tornar racional os momentos terminais quando a grande dor, esperada no seu caso, surgisse. Ela discute isso com uma enfermeira que fala das drogas que cessam a dor, irão adormecê-la, poderá provocar uma parada cardíaca, mas que será ressuscitada pois, recursos existem para tal.

A professora pede que se o coração parar não seja ressuscitado artificialmente. Assina que não quer continuar viva. E se torna, no jargão do hospital, uma sigla com a qual o paciente manifesta sua vontade. A vida continua alguns dias, na fase terminal são horas e a dor inicia.

A professora resiste à dor. Prefere manter o sofrimento, mas está exausta. A dor é demais. Chega o médico principal, acompanhado do residente e indica o uso de morfina. Estabelece-se um contraditório entre o médico e a enfermeira, incluindo os gemidos da paciente. Finalmente o médico diz: é preciso lhe dar um momento de descanso.

É feita a aplicação e ela dorme. Acorda e tem um diálogo com a jovem enfermeira e brinca com a ignorância dela com uma palavra. Depois vem o residente, enquanto a paciente dorme, e traça o perfil complexo, orgulhoso e incisivo da professora em sala de aula.

Numa cena chega uma senhora idosa para visitá-la e a encontra arrasada, mas consciente. Tem medo da morte. Sofre com a solidão de sua situação. A senhora explica que a procurou e indicaram este lugar. Diz que tinha vindo a Londres para visitar o bisneto e faz referência a recitar alguns poemas de um determinado autor. Ela pede que não e então, no mesmo ato a professora pega um livro infantil que levava para os bisnetos, senta-se na cama abraçando a amiga e começa a ler.

A história de um filho que queria se transformar em algo diferente para que a mãe não o achasse. A mãe diz que se transformará igualmente e o reencontrará. Tudo que o filho desafia em transformação, a mãe igualmente transformada lá também estará. Se ela for um passarinho, a mãe será uma árvore para que nela ele pouse. A alegoria é que a amiga sempre seria achada, na interpretação da amiga: por Deus. Ou melhor, dizendo a amiga não fazia uma viagem solitária.

A última cena é o residente encontrando a professora em parada cardíaca e acionando a equipe de ressuscitação a qual é impedida pela enfermeira. Em seguida um poema que não consigo reproduzir, mas traduz isso: a morte nos parece a vencedora sobre a vida. Ela nos ameaça, nos mostra o inexorável. Mas ao final ela é a perdedora quando já não pode mais nada quando estamos mortos.

Por isso mesmo, com todas estas mesquinharias da sobrevivência, o ser humano é sempre maior do que ele mesmo e suas circunstâncias históricas.

Que sobrará de tudo isso - Emerson Monteiro

Às vezes me pego a cogitar quanto ao meu aprendizado desta vida. São momentos estimulantes, que abrem veredas graúdas no bucho da imaginação. Percorro assim meio cabreiro os pensamentos e, paciente, analiso cada feixe reunido nessa liberdade ocasional. Quero fugir dos erros cometidos no passado, mas ainda não posso, descendo e subindo as ladeiras da recordação, apalpando respostas que recebem impulsos naturais do uso. Experimento por dentro o peso da justiça e dos julgamentos, como examinando matérias que pertencem a outras criaturas. Nessas oportunidades ninguém age à toa e as provas das ações grudaram estreita ligação com a sentença dos processos, onde somos réu e juiz. Não alimento dúvidas de que existe Ser Maior que a tudo observa e repõe no devido lugar.
E essa alegria que sujeita de mimos a gente, nas horas agradáveis, vira uma fera, na hora em que o panorama muda. Fecha o tempo, cai o pano da euforia e um fastio angustioso invade a cena, parecendo batalhão de madrastas irritadas saindo à farra.
Mas o que restará mesmo desse cuidado constante em querer sempre o bom para comer, enquanto milhões morrem de fome? Juntar coisas descartáveis e inúteis para satisfazer o ego, e, na pressa em garantir o futuro, preencher revoadas inquietas em bandos nos finais de semana prolongados, em busca do vazio? Do desejo de emitir opiniões, enquanto aos outros não se deixa falar perto da gente sem que nos empolguemos e queiramos falar mais alto, doce engano de chegar primeiro a lugar nenhum?
O gosto de sorrir com alegria, invés de rir de qualquer atitude dos outros, quase num gesto de humilhação a quem parece menor aos olhos das nossas vadiações. Seres que somos, andando para o inevitável de dentes à mostra, feitos hienas desesperadas.
Transformar este palco na festa da solidariedade humana, quantos disseram isto e poucos compreenderam, presos ao cipoal da inconsciência. O traçado representa o mapa da revelação para vencer a ganância do prazer que as vidas renovam todo tempo. Achar a palavra certa de agarrar o mistério de amar e ser, com isso responsável para fertilizar o mundo inteiro, cheio de gente esperta a conciliar dor e beleza, no meio da simplicidade.
Força para isso, convidar os outros nossos vizinhos para exercitar os ensinos que se aprender com esperança nos livros sagrados, geração a geração, paladinos da possibilidade.
Pisar o caminho com o espírito desarmado, qual quem sabe correr o trilho da certeza, superar a solidão e juntar cada centavo de sabedoria em favor da amabilidade, junto dos irmãos da salvação. É isto.

Juazeiro lança projeto Uma Biblioteca em Cada Comunidade

O projeto Uma Biblioteca em Cada Comunidade será lançado, no dia 15 de outubro, às 19h, no Pólo de Atendimento do Bairro João Cabral, pelo Prefeito de Juazeiro do Norte, Manoel Santana, e pelo Secretário de Cultura, Fábio Carneirinho. Na oportunidade será inaugurada a primeira Biblioteca Comunitária denominada de Padaria Espiritual Enock Rodrigues, com um acervo de mais de três mil livros. “Esta será um protótipo para as 19 bibliotecas que serão criadas pela Administração até o Centenário de Juazeiro. A Secretaria de Cultura pretende, até o final do ano, criar mais seis, nas seguintes localidades: bairros Vila Nova, Frei Damião, Parque Antônio Vieira, Sítio Gavião, ONG Juriti e Socorro”, enfatiza Franco Barbosa, Assessor Técnico da Secretaria de Cultura, autor do projeto.
Os livros foram doados pela Fundação Enock Rodrigues, através de Elmano Rodrigues, que se fará presente à abertura dessa primeira biblioteca. A seleção do acervo para cada comunidade está sendo realizada pela Empresa Junior da Universidade Federal do Ceará, com os alunos do curso de Biblioteconomia. Uma parte das 12 toneladas de livros doados pela Fundação será destinada ainda aos sítios Malhada e Assentamento 10 de Abril, em Crato, como também a comunidades de Barbalha, Antonina do Norte, Mauriti e Caririaçu.
Neste sentido, Fábio Carneirinho está convidando você e sua família para se fazer presente ao evento, e solicita a todos doação de livros para as próximas bibliotecas, não importa a quantidade, pode ser um livro e pode ser uma caixa, ou mais. Dê um presente a Juazeiro neste Centenário.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

As meninas de Barra Mansa - José do Vale Pinheiro Feitosa

As “meninas” da cidade sabem viver. Todas descompromissadas com a companhia masculina de mesmo teto. Passam finais de semanas examinando as borbulhas douradas das cervejas, com um prato de sopa quente nas noites frias de Barra Mansa.

Não raro vão à casa uma das outras para experimentarem receitas e costurarem fofocas da cidade. Fazem excursões pelas estradas barrocas das Alterosas, alugam casas nas amenidades da cidade “dezenovecentista” de Bananal. Costumam passar temporadas na fazenda da família da Mirtes, uma delas.

Então na semana passada a Eliane, a pedido de uma amiga, ficou por tomar conta de um cão criado em apartamento. Mas na controvérsia da fuga: se ficar solitário, o danadinho destrói almofadas nos sofás, rói as bordas das portas, arranca franjas que obstruam sua ânsia por companhia.

Mas a Eliane, apesar da incumbência, teve convite para um dia inteiro no campo. Deu um jeito do “Bob” ficar bem alimentado e tratou de cortar a rota de fuga do cão. Terminado o presídio foi livre para um dia de alegrias: Eliane, Viviane e Miriam.

Duas horas da madrugada o carro risca na porta da Eliane para deixá-la, estropiada das “abeberações” e comilanças do dia. Estava tomada de sono. Despede-se e as amiga recomendam que entre antes que saíam. Ela protesta, não é necessário e se vai.

Nem meio segundo o carro ainda acelerava para dar ré quando retorna Eliane saltitante, com os olhos arregalados a denunciar uma cobra bem na entrada da sua porta. Logo este mesmo animal bíblico a incomodar nossas “Evas”.

Uma algazarra generalizada na calmaria da madrugada. Mulheres discursando sobre o método de matar cobras. A vizinha do alto de sua sacada, no segundo andar, vem até a porta do seu olhar sonolento a perguntar o que havia.

- É uma cobra. Enorme. Bem na porta de casa.

- Mata Eliane! Mata a bicha!

- Matar? É ruim! Aí não tem nenhum homem não? Onde estão os homens desta Rua? Só esta lesma que apenas espia e nada faz.

Na falta de um valentão de cacete em punho, a Miriam resolve enfrentar a serpente peçonhenta. Naquela altura juntando todas as fantasias e lendas do ofidiário.

- Espera aí Eliane! – diz a Miriam – Ela é enorme! E esta varinha pode não ser suficiente. Não tem um pau bem grosso aí? A mulher fala na distância razoável além do bote daquela fera. A Viviane também se aproxima e logo diagnostica: Nossa ela está toda preparada para dar o bote.

Nem a cena da mais despreparada equipe de bombeiros num incêndio descomunal mobiliza tanto quanto àquelas mulheres, desde o chão da rua por onde realizavam busca de instrumentos para uma cobra e destilar medo, até o alto da sacada, a vizinha dando pitacos.

Finalmente a Miriam, no meio da azáfama dos resultados, aproveita o solavanco emocional do grupo e se aproxima. É que no lado das amigas havia um amplo debate entre a rua e a sacada, entre àquelas que corriam ao longo da quadra em busca de ajuda e a vizinhança que começava a acordar naquela revolução.

- Eliane, olhe aqui a cobra.

Todos param. Um silêncio de ofertório na igreja. Apenas o tilintar de sinos da heroína com a cobra pelas mãos:

- É uma mangueira. Olhe aqui. Uma grossa mangueira!

- E o Bob da Amélia? Pergunta a Eliane. Fugiu. Passou o dia fugindo e retornando! – respondeu a vizinha do alto de sua sacada. A ficha caiu: foi ele! Que cachorro mais miserável!

Que noite tem estas mulheres. E tem quem imagine que a vida urbana é só luz e máquinas. Televisão e internet. Tem cobra. De viva manifestação, pelo menos simbólica.

domingo, 10 de outubro de 2010

Ethel não sabe bater. José do Vale Pinheiro Feitosa

Imaginemos uma cidade do Médio Paraíba no Rio de Janeiro. A nata da cidade se reúne com o orgulho das famílias pobres cujos filhos das escolas públicas municipais fazem parte de uma excelente Orquestra Sinfônica. Isaac Karabichvsky, o renomado maestro, tomou-se de amor pela orquestra e resolveu, ele mesmo, regê-la para uma apresentação da cidade.

O pessoal que saiu de casa com seus banquinhos para assistir sentado, teve de escondê-los. Era noite de gala e a prefeitura dispôs uma imensa platéia de cadeiras de plástico, coberta com panos brancos a dar valor ao público. E todos se reúnem. Numa das filas a família tradicional, entre elas um grupo de moças, solteiras, desquitadas, plenas ao amor livre. Mas Ethel pertencia a um subconjunto.

Com seus 63 anos, vistosa, mostrando um corpo admirável, charmosa mesmo, é um mistério inexplicável da natureza. Melhor dizendo: da natureza destes tempos. Ethel é virgem. Como? Não se sabe. Como tanto tempo bíblico após o paraíso, Ethel não tinha provado da maçã.

Eis que o Manuel, influente entre as mulheres, mas muito bom de gargalo e tabaco (o que fumaça faz). Chega ao grupo das mulheres com seu charme de encantador. Mas não as convence. A idéia geral é que o homem esteja mais para o verbo do que para o substantivo brocha que significa fecho ou prego de cabeça.

Ou seja, o Manuel está mais para aquela brocha de pintar, flexível e impenetrável instrumento. Eis que mal dar as costas, uma delas compreendendo a insustentabilidade das “cantadas” do homem diz: ele não agüenta nem bater uma p.....Não digo o resto por pudor.

Isso no vão do subtom, para que apenas as amigas ouvissem e rissem sem compartilhar com as mães e pais das famílias tradicionais que as rodeava. A nossa virgem Ethel quis saber do assunto. Uma amiga chega-lhe ao ouvido e repete: O Manuel não agüente nem bater uma p....

A Ethel rir alto e repete: NÃO AGUENTE NEM BATER UMA P....

Entre olhares constrangidos, os moços repetindo a frase num fulgor das luzes abertas, as amigas morrendo de rir e a Ethel achando graça da reação repete a frase mais uma vez. Mas aí a risada toma ares de gozação e a Ethel, é virgem, mas compreende o mundo e se vira para o sussurro da amiga para saber o que havia.

Pergunta o que é P....A amiga diz-lhe que se trata de coisas que ela nunca provou. Mas que acharia o máximo se provasse. Eis que a cesta de frutos proibidos esparramou-se na platéia sinfônica. Os acordes do primeiro movimento de toda a procriação. E excelsas da glória do profano prazer.

Ethel, compreensiva ao momento lembrou-se de compromissos inadiáveis. Naquele dia Isaac Karabichvsky e Orquestra Sinfônica teve uma vacância na platéia. Tudo por que a Ethel tinha achado a palavra P...engraçada e rira dela.

A importância de um amigo - Emerson Monteiro

Ninguém é sozinho. Por mais que se escute dizer, custam séculos reconhecer e integrar à personalidade os valores definitivos desta sabedoria. As facilidades de pular fora, pensar outros conceitos, permitem que mudemos de afirmação quase a cada novo pensamento, pela corrida frouxa das pessoas viverem saltando de galho em galho, como quem troca de roupa, e querer renovar o estoque das filosofias que alimentam a superficialidade. Enchem a barriga das euforias e voam.
Contudo mergulham nas palavras e deixam de lado as vezes reais para estabelecer um caráter maduro, definitivo, de juntar as peças dos quebra-cabeças nos ensinos deste mundo.
Ninguém, por si só, seria suficiente toda hora, nas ações da sobrevivência, pois a natureza impõe participação coletiva no caldeirão social. Daí o espírito de aproximação que orienta a constante busca, nos movimentos humanos para a coletividade.
Por mais independente queira ser, há ocasiões quando o tempo fecha e tudo parece afastar toda segurança, que desaparece qual fumaça no vento. Nessas horas, trabalham os elementos, quebrando o prazer do egoísmo vaidoso, pois homem alguém é uma ilha, comprovou um poeta e descobriram as gerações.
No auge da dificuldade, vai abaixo a máscara do isolamento e as mãos sobem na direção dos outros, ou dos céus. Despidas alternativas de encontrar respostas, as crises e os impedimentos naturais da imensa jornada batem na cara o metal da desilusão. Convencidos nas facilidades aparentes, os poderosos dobram os joelhos e rezam aflitos.
Um amigo, uma amiga, vale seu peso em ouro. Quem duvidar que descubra a certeza desta cogitação. Os que fogem acomodados imaginam meios de morar sozinho feito jabuti, esquecidos, porém, dos riscos da floresta, onde domina o imponderável, no minuto seguinte, conquanto o futuro a Deus pertence.
Nessa riqueza da comunicação, eis aqui, portanto, a lembrança de quanto vale o amigo. Gosto de afirmar aos meus filhos que os dedos de uma mão são suficientes para contar o número dos amigos que se conquista na curta jornada desta vida. E saber que toda pessoa representa uma porta aberta a novas amizades... Quanta grandeza conquistar novos amigos e descobrir o infinito dessas inúmeras oportunidades.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O crime do aborto - Emerson Monteiro

O saber natural em sua ação persistente criou as condições de gerar filhos e os seres humanos em sua ignorância os expelem a sangue frio natimortos, quais eliminassem animais desnecessários, seus próprios semelhantes.
Houvesse leis pela preservação da vida em soberbas características de contenção dos desmandos praticados em redor do mundo e, decerto, a história mostraria inegáveis oportunidades de felicidade a esses tontos mortais esfomeados de prazer imediato.
Jamais, senão agora, demonstrações de ausência de lucidez parecerem crescer no horizonte esfumaçado da destruição na flor da idade, em meio aos escombros da barbárie que toma conta dos séculos. Símbolos de paz viraram motivos de ausência de critério, nas promoções desencontradas de minorias vencidas.
Mas falávamos da covardia do aborto... Que pouca honestidade para com os semelhantes a nascer essa atitude dos legisladores lusitanos... Nem de longe se deve imaginar uma coisa dessas para o Brasil, povo originário dos avôs do outro lado das marés, que desta vez desistem de querer renovar a espécie. Exemplos melhores já nos deram, com certeza... Lições práticas de vida, a língua, o sentimento latino, o fervor, a musicalidade. Agora, contudo, quebraram a cara e nós nos negamos a segui-los.
Tirar a vida, como querer? Não sabemos repor o viver de quem morre, por isso não se devem eliminar os seres humanos que aguardam as mesmas chances de brotar, crescer e conhecer.
A morte dos inocentes em gestação clama consciência, portanto. Falar na esperança dessas vidinhas em sumidouro, desejos de viver na lama dos ausentes, dói e requer disposição de ânimo aos que lutam pela paz. Aquilo que seria a festa das famílias, chegar de novos filhos, torna-se chama apagada no vento abusivo de vazias palavras soltas, derramadas.
E falar em amor exige coerência a uma civilização bandida, revirada nos laços das armadilhas, caminhos tortuosos, vilã matreira de poucas luzes. Gritos de promessas, entretanto, rasgam o espaço de sombra. A força de sobreviver, falando alto nas entranhas das gentes, indica o valor carinhoso de novos sonhos.
Quisessem reverter os quadros fantasmagóricos da indigência e praticassem hábitos justos e alegres de salvar os que, mais que antes, precisam nascer...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Nos delitos de circulação - Emerson Monteiro

Necessidade urgente do crescimento humano, a paciência, hoje mais do que nunca, se torna em instrumento social a toda prova. Com isso, vimos compreender o valor estimável das palavras de Jesus quando indica o perdão e a resignação diante dos obstáculos da jornada. Quando te bateram numa face oferece a outra, ensina o Evangelho.
No mundo de estradas e ruas, nos dias presentes, aquilo que antes figurava apenas pessoas em movimento, no volume individual que ocupava o espaço relativo dos corpos físicos, com a introdução da massa dos carros, o um se multiplicou por vários. O automóvel passou a lotar o chão dos pedestres, e agora os ameaça pela velocidade e transtornos diversos. Cada carro preenche território de oito a dez, doze, pessoas. Banheiras enormes em deslocamento, expulsam para zonas de periferia e campos habitantes de lugares, invade áreas e ameaça a paz de muitos.
O drama desse enxame nas cidades impõe atenção redobrada, sobretudo pelas surpresas que acarretam cruzar as avenidas, atravessar preferenciais e acessar vias expressas. Ninguém mais se sente em absoluta segurança no confronto das bólides luminosas dos tais veículos acelerados.
Os atores do drama, condutores ao modo de salve-se que puder, buscam responder ao desafio desta hora. Cursam autoescolas, prestam exames, desenvolvem habilidades e cumprem as regras do jogo agitado, nessa epopéia de sair para trabalhar, estudar e fazer compras que a aventura representa. Restritos pelos cintos de segurança, apuram a vista e a concentração essenciais à sobrevivência.
Um fator, no entanto, aponta o imprevisível dos volantes. No furor das batalhas, seres humanos de carne e osso, submetidos aos impasses e às falhas do inesperado, se sujeitam a reações nervosas, e gelam. O temperamento psicológico de todo motorista atinge as barreiras do controle, algumas vezes raiando a impulsos bárbaros e criminais.
Aquele pai de família exemplar, cidadão modelo, religioso abnegado, de um momento a outro muda sua costumeira tranquilidade e a calma ocasional, demonstrando comportamentos jamais considerados em iguais situações. De quem agressividade não se esperava, partem gestos e xingamentos dos menos civilizados. O doutor respeitado e educado corre, nessas condições, o risco de responder a homicídios e lesões fora de quaisquer propósitos normais. São os delitos de circulação no trânsito, praga que expoõe os urbanóides modernos.
Praticar ao máximo o domínio de si a humildade, eis só o que guarnece os heróicos paladinos dessa pressa e dos metais. Erguer pensamentos aos céus, no meio da ciranda agressiva e lembrar do amor ao semelhante, que, ali do lado, numa outra nave, também exercita conter a fera solta na arena do asfalto, dentro e fora das couraças brilhantes dessa atualidade inevitável.

sábado, 2 de outubro de 2010

Era da inocência - Emerson Monteiro

Inícios da década de 70. Sempre que possível, buscava ouvir a Rádio Sociedade da Bahia, nos fins de tarde começo de noite, aspirando aos ares de Salvador, para onde seguiria logo mais, transferido no Banco do Brasil para a Agência Centro daquela capital. O gosto pelas coisas baianas fincara pés dentro de mim desde 1959, quando meu pai viajara a negócios à Boa Terra e pretendera me levar consigo, sem, no entanto, realizar a sua disposição, o que me deixara com água na boca para conhecer de perto as novidades que nos trouxera de lá apenas em palavras e poucos artesanatos do Mercado Modelo.
Depois, vim lendo Jorge Amado e seus livros inolvidáveis, apegos de um tempo. Gabriela, cravo e canela. Os pastores da noite. Mar morto. Os velhos marinheiros. E, no movimento tropicalista, o impacto de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Tomzé, à frente da vanguarda artística nacional. Além de tudo, a beleza da tradição histórica da primeira capital, sua arquitetura e belas paisagens litorâneas estonteantes.
Bom, num desses programas de fim de tarde, na Sociedade da Bahia, ainda em Brejo Santo, ouvira algumas músicas do disco Raulzito e seus Panteras, nada menos do que o primeiro trabalho de Raul Seixas, mito da música brasileira durante décadas, ídolo psicodélico que fora nesta parte do mundo.
O grande Raul começava uma carreira de sucesso que marcaria o universo cultural de nossa gente. Era seu primeiro disco, gravado com os Panteras, grupo que liderava nas noites de Salvador. Jovem principiante, sem grilos ou mergulhos pelo mundo traiçoeiro das drogas pesadas, que adiante o levariam ao desaparecimento. Não só a ele, mas a outros valores principais das artes, tanto no País, quanto no exterior, cicatrizando de cruzes a beira das estradas de um tempo e ferindo de dor os corações aquecidos de nossa dourada mocidade.
John Lennon já gritava bem alto que o sonho acabara. Algo buscávamos nas entocas e não mais acharíamos o charme dos primeiros amores. Haviam se recolhido as pontes dos castelos de cartas. Das brisas suaves das doces melodias ouvíramos, depois, tão só o rugido fantasmagórico de harpias e dragões trovejando os ares amarelecidos das mudanças severas que garrotearam o clima platinado de antigamente. Os sons exatos e penetrantes de Jimi Hendrix enovelaram a cólica da resseca no brado agudo sensual de Janis Joplin, Elis Regina. Enquanto isso, líderes foram assassinados diante das câmeras em plena luz do dia (Robert Kennedy, Malcom X, Che Guevara, Luther King, o próprio John Lennon).
Então, hostilidade exacerbada, cruenta, carcomeu o casco do navio em chamas. As portas abertas se fecharam de vez e os hippies sairiam tontos pelo mundo, à procura do nascer do sol, de que ainda esperam o furo da luminosidade.