Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O ser e o tempo são só um - Emerson Monteiro

O homem e a hora são um só
Quando Deus faz a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.


Fernando Pessoa.

Um, o seu outro lado; outro, o inverso de si mesmo. A integração absoluta do objeto no sujeito que perfaz do todo a face única, indivisível. O tudo e o nada numa unidade essencial e pura, uma unidade que mergulha o mistério do ser, reunindo a um só instante o tempo que resta e o bloco das consistências infinitas que um dia principiaram a ser, nas marcas de formas trabalhadas no confronto do dois em só uno e pronto, atritar persistente de esferas a rolar no abismo da eternidade, ao sabor do destino.
Predissessem limites e reflexos vazios contornariam a fronteira das marés, nos continentes dos mares, nos rios, linhas imaginárias de traços inevitáveis, porém vagos e inúteis, meras ficções de lábios rotos e gargantas secas entre terra e água. Pontos soltos a desenhar os céus com traços invisíveis, estridentes sonhos da inexistência, somas vultosas subtraídas e esquecidas em porões escuros de naus malassombradas, desaparecidas na bruma dos segredos.
Isso de perguntar da filosofia, nas questões reflexivas de alta profundidade, quer-se crer adiamento dos encontros definitivos com a sorte das estradas desertas, nas cinzentas, frias e ausentes madrugadas de prenhes de respostas contundentes, pois estas foram ali postas, dadas em graves acentos de bocas escancaradas e momentos de furor.
Ninguém alegue, pois, desconhecimento da lei depois das pistas avermelhadas de fogo e sangue prescritas nas alvoradas, tramas do reluzir das pedras. À ponta da língua do pensamento vêm e vão golfadas de sinais da solução do enigma, nas perguntas da vida. Desconfiados de que sabem a derradeira expressão da história futura, bichos arrastam os ossos ressequidos em caudas poeirentas pelo do deserto da existência, reluzentes lagartos de vaidade agressivas preocupações, quais teimosos animais de carga feridos nas vistas diante das claridades da luz.
Alimárias encandeadas, percorrem as trilhas toscas, aprofundadas no pisar das gerações, e andam aos tombos, formigas cambaleantes soltas no vento feitas folhas de árvores fantasmagóricas, sacrossantas miragens da adoração das tribos impacientes de antigamente. Pavios acesos e olhos apagados, o tropel das massas invade o território santo em blocos repetitivos, ao som dos trovões monumentais que quase ecoam sem final, às paredes metálicas de cordilheiras de fumaça.
Nas tripas enoveladas das entranhas, assim, dos tenebrosos monstros entontecidos ao zumbir do enxame feroz de insetos arcaicos atiçados de propósito pelas presas nas teias do pensamento, a dúvida de dentro seriam as dúvidas de fora, valor exclusivo das espécies individuais. Embaixo e no alto. Fora e dentro. Túnica sem costura. Essência de coisa em si e sujeito próprio de todos criador. Pomo particular e pronto.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Boa música no Salviano Arraes - Emerson Monteiro

Na noite deste domingo (29 de agosto), os cratenses foram brindados com a apresentação musical dos cantores e compositores cearenses Marcos Lessa e Aparecida Silvino, que moram em Fortaleza. No auditório Salviano Arraes, acompanhados por Ibertson Nobre, Lifanco, Francisco Silvino e Célio Lessa, em ocasião das mais inspiradas, os músicos ofereceram ao bom público que compareceu ao espetáculo um repertório primoroso, com a influência da melhor MPB.
Numa alternativa de qualidade pelo bom gosto da arte oferecida, momentos assim propiciam o encontro dos aficcionados por estilo musical refinado que, de certeza, tem admiradores em toda a Região.
A música oferecida pelos dois compositores e o modo informal com que se desenvolveu o show puseram em dia o bom gosto do Cariri, nesta fase da história artística brasileira que deixa um tanto a dever em relação aos tempos áureos de nossa música.
Os espectadores que se deslocaram ao Cine Teatro Moderno, cheios de satisfação, aplaudiram de pé o raro momento propiciado nessa noite de final de semana em Crato, numa produção que teve o patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

AGENDE-SE!

APARECIDA SILVINO NO CARIRI ENCANTADO –PROTAGONISTAS!


Nos anos 90 a OCA enxergou que um coral faria muito bem para agregar artistas e pessoas da comunidade em torno do canto, daí resolvemos (Eu e Carlos Rafael) chamar o Nivaldo e o Leonardo (dois músicos da Solibel) para se revezarem na regência daquele coral que foi batizado de “Boca de Sapo”, em homenagem ao símbolo da OCA que é uma gia. No momento seguinte, uma oficina de canto foi sugerida pelos regêntes no sentido de aprimoramento da voz para receber o repertório. Então, é ai que entra Aparecida Silvino nessa estória bonita que durou pouco tempo mas deixou marcas no coração de todos aqueles “loucos” que começaram a admirá-la e por ela nutrem o maior carinho e hoje será bem recebida no nosso Cariri Encantado-Protagonistas!.
APARECIDA SILVINO é é cantora, compositora, pianista, regente, arranjadora e preparadora vocal.
Trata-se de uma das melhores vozes nacionais" atesta o cantor e compositor Milton Nascimento, que fez questão de ter Apá como convidada especial no show "Crooner", apresentado em Fortaleza.
Conhecida e com público cativo no Ceará, ela tem sido requisitada a abrir shows para grandes nomes da nossa música, tendo se apresentado ao lado de Fagner, Nana Caymmi, Suely Costa e Belchior.
Em 2003 e 2004 foi agraciada com Prêmio Nelsons da Música Cearense como Melhor Intérprete Cearense e Melhor Intérprete Feminina.
Em 2006, ganhou o título de Melhor Intérprete no Festival da Meruoca/CE, defendendo a música “Curta a vida”, composta em parceria com José Edu Camargo.
A voz e o talento de Aparecida Silvino já chegaram a locais como a Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro; O Feitiço Mineiro, em Brasília; a Sala Sidney Miller da Funarte-RJ; e a Expo-2000, em Hannover - Alemanha.
Entre seus parceiros estão: Sonekka, Zé Edu Camargo, Luhli, Gilvandro Filho, Nilton Bustamante, Conrado Falbo e Alan Mendonça.
Aparecida prepara seu segundo cd "Sinal de Cais", totalmente autoral, diferente de seu primeiro trabalho em vinil "Vidro&Aço" e seu primeiro Cd "Presente".
Uma das mais queridas cantoras da Cena Musical de Fortaleza, vem se apresentando em várias cidades do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife com o repertório a ser gravado no Cd "Sinal de Cais". Atraindo assim ainda mais admiradores.
A TV Diário de Fortaleza gravou um especial com o show "Sinal de Cais" em julho de 2009 e vem apresentando repetidas vezes o mesmo especial à pedido dos telespectadores.
Nas entrelinhas da escrita produtiva do cd “Sinais de Cais”, a inquietude criativa de Aparecida Silvino concebeu, compôs e produziu, em parceria com Alan Mendonça, o cd "MÃE", o qual foi lançado dia 9 de maio, dia das mães, na Igreja do Cristo Rei.
A idéia do cd surgiu dentro do movimento artístico cearense chamado "Ceará Autoral Criativo". O cd Mãe tem direção musical e arranjos de Adelson Viana e conta ainda com os vocais de Lia Veras e os violões de Eduardo Holanda.

ENCONTRO MARCADO

Cariri Encantado-Protagonistas!
Pelas ondas sonoras da Rádio Educadora, 1020 Khz
A partir das 14 horas e 10 minutos
Apresentação: Luiz Carlos Salatiel

na internet OUÇA através do site: www.radioeducadoradocariri.com

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Vote no João !

Pois é, amigos, vocês repararam que a as ruas estão com outro aspecto? Sorrisos fartos e rasgados, solidariedade franca, bandeiras tremulando pelas esquinas. Banners poluem as vielas com fotos feias e photoshopadas . Só falta mesmo a orientação no topo : “Procura-se”. Velhinhos têm sempre um braço amigo para atravessar a avenida, criancinhas catarrentas são abraçadas sem receio, bacanas visitam casebres e favelas e apertam mãos calejadas, sem o costumeiro uso de desinfetantes. É que começou a temporada de caça ao voto e os cães farejadores já foram estumados cidade afora. Observem bem as caras, pois, como cometas, aqui só aparecerão, novamente, a cada quatro anos: ainda bem ! A maioria deles expõe, claramente, a única obra que farão se eleitos: sua propaganda descolorida, pálida e de mal gosto.
Não bastasse a poluição visual, de todos os momentos, recebemos junto, num kit, a sonora. Nem me queixo dos programas eleitorais, estes , ao menos, podemos evitar com um simples toque do remoto, ou assistir a eles : não existe, atualmente, melhor programação humorística na rede. O terrível , no entanto, são os carros de som com suas musiquinhas insuportáveis e repetitivas. A repetição , por si só, já desgasta qualquer obra refinada de arte. Quem suporta, por exemplo, “Pour Élise” de Beethoven, tocada ad infinitum pelas secretárias eletrônicas ( “um minuto, por favor: taram-ram-ram-tam-ram-ram-ram...”) e pelas companhias de gás butano avisando a entrega sistemática ? As políticas, então, trazem paródias horrorosas de melodias que, no original, já mereciam a lata do lixo. E não há como fugir delas, estão espalhadas por todo canto. E ainda as apelidam de propaganda eleitoral gratuita. Salve-se quem puder!
Rui Pincel , nestes dias, contou-me duas histórias da publicidade eleitoral sonora, na última campanha, em Matozinho. De uma efetividade de fazer inveja ao Duda Mendonça ou ao Washington Olivetto. João da Birosca tinha uma pequena bodega nas cercanias de Bertioga, Distrito de Matozinho. Resolveu se candidatar a vereador, por infunca do prefeito Sinderval Bandalheira que precisava de um corretor de votos naquela localidade, historicamente infestada de adversários seus. João pegou ar na bomba e meteu-se na enrascada, sem perceber que corria sérios riscos de ver seu pequeno empreendimento na falência total e irreversível. De parcos recursos (sem caixa nem 1, que dirá 2) , João providenciou, ele mesmo, a música emblemática da sua campanha e escolheu aquele hit sertanejo : “Quero você!/ Quero você/Quero você, todinha prá mim!” Sem largos recursos poéticos, já montado num pangaré tão sem futuro, a paródia saiu assim:
“Vote no João,
Vote no João!
Vote no João!
Vote no João!
E , depois da infindável repetição, como um mantra, finalizava:
“Ele é nosso amigão!”
Terminada a primeira parte, repetia-se a música novamente, eternamente, infindavelmente, desde as cinco horas da manhã, até as dez da noite. Eram mais de cinco meninos com sons roufenhos adaptados em bicicletas antigas, os famosos picossons, correndo todas as ruas. E vejam que eram dois meses ininterruptos de Campanha. Segundo Rui, por incrível que possa parecer, Birosca terminou como o candidato mais votado de Matozinho. Nem a W / Brasil, se contratada , teria feito uma melhor publicidade. E explica: na segunda semana, toda Bertioga já não suportava o “Vote no João” e pediram, por todos os santos do céu e do purgatório para que ele cancelasse a veiculação da propaganda. Havia o sério risco de , no dia da eleição, todos os bertioguenses não puderem votar em tratamento psiquiátrico em algum asilo da capital. Birosca concordou, com uma condição: tinham de jurar, de mãos postas, pela alma de Frei Damião , que votariam nele para vereador. Bingo!
Na mesma campanha, Joca Fubuia, o maior pau-d´água da vila, andou botando boneco na rua do Caneco Amassado e as meninas chamaram a polícia. Joca foi recolhido à prisão local, no início da noite, mais melado do que gamela de engenho. Deitado na masmorra, sem ter o que fazer, pôs-se a cantar a musiquinha do seu candidato João da Birosca, que lhe fornecera a mendraca gratuitamente, para aquele porre fenomenal:
“ Vote no João!
Vote no João
Vote no João
Vote no João...”
Os soldados, de plantão, ainda agüentaram uma hora daquele mantra interminável e, aí, com os ouvidos em fogo, como se atacados por marimbondo de chapéu, começaram a reclamar:
--- Para com essa zoada aí, bêbado safado! Pára !
Fubuia, no entanto, não se intimidava: “Vote no João/ Vote no João” e respondeu :
--- Páro nada, rapaz ! Me prenda se estiver achando ruim! Me prenda!
Às dez da noite, ninguém mais suportava aquilo e como prender quem já estava enjaulado? Até o delegado que era meio mouco estrilou. Depois de uns dois ou três safanões de praxe, soltaram Fubuia para os prazeres da noite e das oiças. Como não eleger um candidato de tamanho prestígio? Vote no João!

J. Flávio Vieira

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O gol - Emerson Monteiro

Início dos anos 70, tempos blindados e sonhos lotéricos também na Miranorte, cidadezinha do atual estado de Tocantins, onde Alemberg viveu parte de sua infância e guardou muitas histórias como esta que vamos contar.
Numa tarde de domingo, após a feijoada do meio-dia, na sala de visita de seu Luiz Torneiro, os amigos se achavam reunidos para acompanhar os jogos da Esportiva pelo País a fora. Na verdade era essa a diversão maior da semana.
Dona Iracema bem que se esforçava para dar de conta dos tira-gostos improvisados. Uns poucos aperitivos quentes e a festa enchiam todas as medidas, depois dos buchos cheios de feijão preto e dobradinha do almoço.
Lá pelas cinco e meia, a maioria dos placares recolhidos atendia ao cartão da apostas de seu Luiz, que muito se alegrava na transmissão da partida principal: no Maracanã. Jogavam Flamengo e Fluminense. Excluídos dois vascaínos da roda, os outros sete torciam pelo rubro-negro da Gávea, opção cravada sem sombra de dúvidas no sonho dos treze pontos.
A noite se definia calorenta, apesar de ligeira brisa que entrava pela janela da sala abafada. Sofá e poltronas pareciam mais aquecedores do que conforto, quando a soma dos pontos principiou a esfriar o sangue da turma com a hipótese do sucesso integral dos palpites. Nove jogos completados e o território ficava pequeno para tanta expectativa.
Seu Luiz chamou um dos filhos e passou as instruções:
- Vá na venda e pegue, adiantado, três brahmas geladas. - Percebeu que denunciava a certeza suada na vitória, mas disfarçou, acrescentando: - Traga também duas latas de quitute, que as coisas vão melhorar mesmo.
Compadre Zé Pedro administrava a totalização dos pontos, de ouvido ligado no receptor a válvulas, lápis e papel na mão. Outro resultado favorável, e a sorte se oferecia dadivosa.
Veio o material requisitado na bodega e a notícia se espalhara pela redondeza, arrebanhando os primeiros perus, que engrossaram o grupo e agitaram a casa. No meio do labacéu apenas uma figura permanecia quieta, desconfiada, impaciente da sala para a cozinha. Dona Iracema parecia concentrada na devoção ao santo para o empurrãozinho que faltasse. Ainda assim, cuidou com zelo de esquentar as conservas numa vasta travessa, combinadas de tomates e farinha que dessem para atender a todos.
Outros jogos se completavam e emoção grande se reservava do décimo primeiro ao décimo segundo. Houvesse saldo, teriam espocados os primeiros rojões. No entanto ouviam-se apenas os gritos estridentes da numerosa torcida. Restava aí tão só o garboso Fla X Flu. E tomem choro e gemidos.
Pelo visto, a fortuna sorriria naquela casa, naquela tarde. Daria Flamengo na cabeça, pois a partida pendia para seu término e o time garantia com facilidade o 2 x 1.
Daí generalizou-se a tensão, parecido como se os circunstantes sentissem a gravidade do momento. Por certo cada qual se punha no lugar da família de seu Luiz, em vias de realizar grande transformação. Passaria de pobre a rico, num golpe do destino. E escutaram, vindo de dentro do quarto, pungente a reza da dona Iracema, devota respeitável na frente do santuário. O locutor tremia a voz, como se vivesse o drama distante. Mãos suadas. Atenção redobrada nos lances de pequena área. E o tempo cooperando.
43 minutos do segundo tempo. 44. 45, e os descontos. Nessa hora, uma falta na cabeça da grande área a favor do Fluminense. Barreira formada, derradeiro cartucho, escaramuça debaixo das traves, e o tricolor converte:
- Gooooooooooooool! - de dentro do quarto, a explosão de alegria da fiel companheira de seu Luiz, braços aos céus, num gesto de agradecimento.
A princípio, calculou-se ter a mãe da família desvairado, produto da frustração que todos transpareciam, isso para susto de seu Luiz, que foi dizendo:
- Mas Iracema o gol foi do time adversário, e nós perdemos os treze pontos. Por que essa manifestação de alegria? - indaga receoso.
- Não é isso, não, Luiz. É que antonte faltou tempero em casa e com o dinheiro que deste para o jogo eu comprei foi os legumes e a perna de porco que vocês comeram no almoço de meio-dia, homê.

(Do livro Cinema de Janela, Terceira Margem Editora, São Paulo, 2001).

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

CHRONICAS CARIRIANAS


Essa doeu!

Por Zé Nilton*

Parece mais um pesadelo quando se vai virando página por página do livro “História do Brasil com Empreendedores”, do escritor Jorge Caldeira, São Paulo: Mameluco, 2009. O homem dá uma estocada lá no fígado de certa intelectualidade pródiga em explicar a historia da formação brasileira pelo viés marxista. Qual um carrasco, no que este tem de impiedoso, o cara se reveste de um maquinário argumentativo e documental de agudas pontas, e se investe terrivelmente na desconstrução axiológica da metodologia do famoso Caio Prado Júnior, na sua obra inaugural “Evolução Política do Brasil”. É paulada pura!

E nós, das Ciências Sociais, que fomos “obrigados”, apesar de você (a ditadura), nos anos sessenta e setenta, a pensar o Brasil pela ótica conceitual de Caio Prado Júnior. Que decepção, a ser verdade as revelações de origem, de formação e de sinceridade intelectual do dito cujo.

É complicado entender que o homem escreve uma obra marcante na interpretação de nossa formação enquanto sociedade periférica, enquadrando-a num referencial teórico de iluminação marxista, sem ainda ter plenificado sua compreensão do materialismo histórico.

Pior, segundo o cruel Caldeira, ele passa a limpo as interpretações históricas de nossas gêneses capitalistas a cópia fiel dos escritos do positivista e racista Oliveira Viana. Pode ?
Não estou fazendo uma resenha do livro. É bom que todos leiam e tirem suas conclusões. Eu já tirei as minhas...

Minha preocupação desde muito é com a História do Cariri do século XVIII. Aí entra uma particularidade do livro de Jorge Caldeira. Ele fala do pouco alcance da explicação tanto marxista quanto conservadora sobre a economia do século XVIII no Brasil. Ambas não deram conta do que realmente significou a dinâmica do capital por aqui, pois ao reificar o constructo do modelo exportador de nossas riquezas, deixou de lado a existência de uma classe de empreendedores que, “ligada à produção independente e à pequena propriedade, produziu uma economia dinâmica, que crescia em taxas mais elevadas que a da Metrópole – mesmo tendo de lutar contra a ação do governo. Resultado: a economia brasileira, em 1800, era bem maior que a de Portugal”.

É aí onde quero chegar. Era incalculável a riqueza de certas famílias no interior desse Brasil, no período da colonização, principalmente nos sertões distantes do mercado exportador.

Pois quando da elevação do povoado do Tauá em Vila Real de São João do Príncipe, em 3 de maio de 1802, segundo o historiador dos Inhamuns, o eminente Antonio Gomes de Freitas, no seu livro, Inhamuns, Terra e Homens, Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1972, o garbo, o fausto e o brilho das famílias empreendedoras da região se fizeram notar, no momento mesmo do ato público de criação da Vila.

Diz Freitas reproduzindo documentos da época:

“No patamar da Igreja via-se reunida em torno do Ouvidor, naquele três de maio, a sociedade tauaense, ofuscando com o brilho, com o esplendor, a comitiva que não se cansava de olhar aquele quadro bizarro de fausto e pompa.

Eram as damas da terra, as senhoras dos fazendeiros e as sinhazinhas, suas filhas, num luxo vienense, de surpreendente elegância com espartilhas a comprimir a cintura, vestidos de anquinhas, enfeitados de renda Racine, vindos do Reino, calçados de velbutina, marroquim ou camurça, grandes pentes de ouro, enfiados em cocós ou, quando sem eles, um pano delicado, uma mantilha de preço, cobrindo-lhes a cabeça. Enfeitavam-lhes gemas belíssimas de ouro e pedras preciosas, brincos, gargantilhas, redomas, trancelins, pulseiras de berloques, longos cordões de ouro, que chegavam a medir até duas braças(sic).

O fausto com que se apresentavam os “grandes” da nova metrópole do Inhamuns, traduzia fielmente a riqueza da terra. Metidos em casacas ou sobrecasacas de pano fino azul ou preto, jaqueta de mangas-justas, algumas vezes enfeitadas de renda na altura dos punhos, coletes de musselina, um por dentro do outro, calções acolchoados abotoados ao joelho, que se casavam com meias de seda fina de Saragoça, colarinhos duros, levantados, com gravatas e meio lenço, chapéus legítimos de Braga e guarda-sóis de variegadas cores, de preferência vigorosas... De par com estes, o capitão-mor dos Inhamuns, José Alves Feitosa.... e demais oficiais das Ordenanças. Garbosos, em vistosos uniformes de gala, com chapéu fino, armado, atadas à cinta longas espadas, de copos de ouro, que se conservava guardadas em estojos de prata. Os sapatos em verniz, de entrada baixa, cravados de fivelas de precioso metal”.

Pra você ver, como quer Caldeira, internamente havia o enriquecimento de grupos que não produziam para exportação e que viviam numa riqueza fenomenal.

Terminando, eu digo que aprendi a desconfiar das teorias totalizadoras que teimam em não reconhecer que o mundo é feito de partes.

*Antropólogo. Professor do Departamento de Ciências Sociais da URCA.
www. figueiredo.jnilton@gmail.com

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Prof. Zé Nílton Figueiredo, no Cariri Encantado: Protagonistas!


Afinal, de que forma se deu o descobrimento (?) , a catequese e o aldeamento dessa região dos índios que formavam a nossa “Nação Cariri”? A resposta possível, e com uma perspectiva histórica desde a sua gênese, é que vamos tentar obter na conversa que teremos com o antropólogo, filósofo, historiador e professor Zé Nílton Figueiredo ( que também é radialista) e tem aprofundada pesquisa sobre o tema que será abordado neste Cariri Encantado – Protagonistas! desta sexta-feira, dia 20, a partir das 14:10 h pelas ondas sonoras da Radio Educadora do Cariri, 1020 khz.

ENCONTRO MARCADO
Cariri Encantado – Protagonistas!
A partir das 14 horas e dez minutos
Pelas ondas sonoras da Rádio Educadora do Cariri, 1020 khz
Produção: Oca- Officinas de Cultura, Artes e Revista Virtual CaririCult
Apresentação: Luiz Carlos Salatiel
Ouça pela Internet: www.radioeducadoradocariri.com

foto: Blog do Crato

A Primeira Pedra

Sakineh Mohammadi Ashtiani é uma iraniana de 43 anos e que nestes dias se tornou notícia na imprensa mundial . O motivo, como sempre, nestes casos em que envolve países do terceiro mundo, vem à tona com as piores causas.Mais ainda quando o Irã vê-se metido numa controvérsia mundial sobre a produção de armas nucleares. Nada de fatos heróicos, de recordes , de fabulosas obras de arte . Sakineh foi condenada à morte , por um motivo banalíssimo. Viúva, mesmo assim, foi acusada de adultério e recebeu a penalidade absurda e, não bastasse isso, mais terrível ainda na sua forma. Deverá ser enterrada a meio corpo e morta por apedrejamento. A sentença parece até ter sido arrancada de tempos bíblicos. E, por mais incrível que possa parecer, o foi. Boa parte dos países islâmicos não têm qualquer separação entre Igreja e Estado e a Constituição do país, os Códigos Civil e Penal terminam por se resumir nas páginas do Alcorão. O livro sagrado dos mulçumanos tem mais de mil anos e, como tal, não sofreu qualquer upgrade em todos esses anos. A maior parte das religiões do planeta padece deste dissonância entre as inflexíveis regras de moralidade ditadas por seus livros ditos sagrados e a dinâmica natural do universo e dos costumes. Como conciliar a estática daquilo que foi ditado há séculos, com o dinamismo da vida e as transformações avassaladoras do mundo que a cada instante modifica-se da água para o vinho, como um caleidoscópio? Quando Estado e Igreja formam um só corpo, então, as fissuras se tornam presentes, enormes, irreconciliáveis. Imaginem se no Brasil os casos de adultério fossem todos tratados da mesma forma? Ia faltar pedra no mercado para atirar em tanto condenado. Houve uma forte pressão da comunidade mundial e, ao que parece, o apedrejamento foi cancelado e a pena comutada para enforcamento. Grande vitória da diplomacia mundial!
A questão referente a Sakineh traz consigo um sério impasse ético. Na nossa visão ocidental, existe uma perversidade impensável na sentença imposta à iraniana. Que direito tem o estado de se imiscuir numa pendência de caráter francamente afeito à individualidade da pessoa humana? E mesmo que se tipifique o adultério como crime, a pena de morte nos salta aos olhos como uma loucura ímpar. Mas surge, no horizonte, a encruzilhada ética: temos o direito, com nossa cultura ocidental, de julgar os atos, as leis, os costumes de uma outra cultura? Qual o balizamento para se depreender que nós estamos certos e eles errados? Eles, do seu lado, têm o mesmo sagrado direito de nos julgar segundo suas regras e tradições. Para que lado a verdade puxará o fiel da balança?
Por outro lado, quase ao mesmo tempo, os jornais estamparam o caso da Eliza Samúdio suspeita de ter sido trucidada cruelmente pelo goleiro Bruno em Belo Horizonte. Sem falar no assassinato da advogada Mércia Nakashima, de São Paulo, cujas evidências levam a suspeita da autoria ao namorado Mizael. Mera coincidência? Infelizmente, não! No Brasil, por incrível que possa parecer, a pena de morte contra a mulher é uma instituição organizada e azeitada. Na última década mais de 41.000 mulheres foram mortas, uma média de 10 a cada dia. Destes casos, mais da metade foi causada por motivo fútil, como meras discussões domésticas. 10% envolviam ciúmes e, um outro tanto, o uso de drogas. No Ceará mais de mil boletins de ocorrência são feitos a cada mês por violência contra a mulher.E aqui, entre nós, só no ano passado, foram assassinadas 147 e --pasmem, amigos ! -- 23 só aqui no Cariri.
No mundo todo, a situação do sexo feminino não é menos vulnerável. Estima-se que na América Latina e Caribe entre 25% a 50% das mulheres sofrem violência doméstica. Segundo o Banco Mundial entre 5 a 16% dos anos saudáveis de uma mulher são perdidos por conta da violência, que só nos Estados Unidos custa entre 5 a 10 bilhões de dólares todo ano.
Como vemos, a absurda penalidade imposta a Sakineh, não lhe é exclusiva. Até mesmo a crueldade da execução é quase uma regra: apedrejada , esquartejada, oferecida à ração de cães, afogada, queimada. O que varia ? No Irã, o estado submete o réu ao menos a um a julgamento, faccioso , parcial, certamente. Entre nós, no entanto, o júri , o juiz e o carrasco são os próprios companheiros destas jovens que as executam sumariamente sem nenhum direito a defesa.
Para combater essas as formas de opressão é preciso ter coragem de mergulhar no pântano e buscar a raiz da árvore carnívora.. É preciso, no entanto, lembrar que a absurda pena imputada a Sakineth é mais visível e mais fácil de se lutar contra ela. A violência doméstica, no entanto, é mais insidiosa, mais virulenta, mais oculta, mais multifacetada. Ela está na raiz de quase todas as formas de violência do mundo e, como um cupim, destrói lentamente toda a tessitura das relações humanas. Uma estranha ponte une Sakineth a Eliza Samúdio. Desarmemos os corações e as mentes! Antes de tudo tem-se que entender que somos todos animais que há pouco descemos das árvores e ainda não conseguimos de todo escapar da Lei da Selva, da prevalência do instinto sobre a razão. Quem nunca compactou com alguma forma de violência que atire a primeira pedra!

J. Flávio Vieira

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A força do querer - Emerson Monteiro

Nas situações diversas em que a vida se mostra, perguntas saltam à nossa frente, pedindo interpretação das origens dos acontecimentos. Por mais grossos sejam os cadernos usados, sobram detalhes do lado de fora para exame posterior. De tudo por tudo querem as pessoas saber os motivos. Mas a correria diária segue no embalo constante, quase sem deixar espaço na busca dos mistérios.
Presos na dúvida materialista, muitos rejeitam as religiões, conformados aos prazeres imediatos. Farinha pouca, meu pirão primeiro, diz o povo. Na incerteza do futuro, derrubam árvores para comer uma única safra.
Por isso, vícios arregimentam força, pela imprevidência das pessoas quanto ao futuro. O incerto pelo duvidoso. Na juventude, esse velho costume sujeita um tanto de dependentes, pois eles dão preferência aos gozos da carne, invés do planejamento de futuro harmonioso. Quando ainda têm oportunidade, lá adiante se lamentam: Soubesse eu o que sei agora...
Vencer aos instintos nocivos salvaria o bem que nos espera nas possibilidades promissoras. Será reunir forças suficientes e conter os impulsos, para usufruir de novas ofertas. Quantos presidiários vivem arrependidos por perder o autocontrole em horas críticas. Atendem impulso destrutivo e destroem a liberdade, laçados nas malhas do remorso cruel.
Daí o conceito de que vitorioso não é quem vence os outros. Vencer a si mesmo eis na verdade o que conta. Evitar a derrota, ser conquistador dos instintos da perversidade, dos vícios, da vaidade humana.
Quem consegue elaborar outro roteiro na vida, submeter o erro e reconstruir as chances de obter a paz da consciência, receberá à vitória, além de demonstrar pelo exemplo o que outros necessitam.
Independente, no entanto, dessas aspirações comunitárias, valerá a satisfação pessoal de reverter vida trágica e descobrir caminhos de alegria e realizações interiores.
Para os místicos, Deus é isto, a vida que pulsa nas veias, no tempo e na luz perfeita do Universo. Está no amor entre as criaturas. No bem que produz em prol dos menos favorecidos. Nas forças da Natureza. No gosto de viver com ânimo forte, saúde física e mental, resultado de dedicação aos fatores da virtude. E a força do querer fala disto com bravura no coração dos heróis da espiritualidade.

domingo, 15 de agosto de 2010

Zodíaco - Emerson Monteiro

Na década de 70, Salvador fora contemplada com a agência mais luxuosa do Banco do Brasil. Construída na artéria principal do Comércio, Avenida Estados Unidos, defronte ao porto, é um prédio monumental, todo revestido de mármore branco, de nove andares, que, em 1977, abrigava em torno de 500 funcionários. No andar superior, situava-se o auditório e o restaurante, este palco do que irei agora narrar:
Escolhido para assistir o inspetor Mário Jofre, mineiro de quatro costados que inspecionava a CACEX da agência, lá um dia almoçávamos no restaurante, o que costumávamos fazer durante sua estada na Bahia.
Ele havia pedido um bife mal passado, mas um único bife, que ocuparia o prato inteiro, acostumado a comer toda vez em que presenciei.
E enquanto esperávamos as refeições, aproximou-se um colega com quem desenvolvi rápida conversação a propósito de astrologia, horóscopo, essas coisas que, houve um tempo, me interessaram.
O inspetor prestou alguma atenção ao assunto. Quando o colega se afastou, quis ele saber se eu possuía conhecimento de signos. Respondi que sim, apenas qualquer. Então veio perguntando à queima-roupa:
- Pois dia a qual signo eu pertenço? – isto na mesma ocasião chegava o garçom trazendo o prato repleto da carne que ele pedira.
- Bom, inspetor, pelo prazer que o senhor tem de comer carne quase viva, deve ser Leão – respondi no chute, sem muita demora.
Com a resposta, o homem quase esquece o alimento à sua frente, alardeando em voz alta as minhas qualidades de conhecedor de signos, etc., na maior das alegrias.
Nisso, bem naquele movimento, vem chegando Brito, o gerente adjunto responsável pelo pessoal da agência, dotado da fama de austero, executivo competente, típico das empresas grandes. Mediante a cena, o inspetor se dirigiu a ele já contando da minha capacidade em adivinhar o signo das pessoas, propagando uma fama recém adquirida.
Brito chegou calado e sentou à mesa conosco, sério, cara dura, sua característica, para, mantendo a pose, deflagrar:
- Sendo assim, diga qual o meu signo. - Imaginem a tal situação em que me vi, naquele momento, metido até o pescoço numa sinuca de bico.
Dentro de período curto, sem tergiversar, reuni os elementos que o juízo ofereceu e fui respondendo:
- Bom, deve ser Gêmeos ou Balança.
Quase no susto, vi a surpresa tomar de conta da fisionomia grave do gerente e escutei outra pergunta, agora admirada: - Por que Balança, por que Balança?
- Pelo seu jeito ponderado, equilibrado, de fazer o que faz – revidei, liberando a apreensão do imprevisto.
Nessa hora, terminava a refeição e, temendo novas indagações, cuidei de saltar fora, alegando compromissos de urgência. Vejam só, nem eu sabia dessas minhas qualidades de adivinho, demonstradas ao acaso da situação.

sábado, 14 de agosto de 2010

CHRONICAS CARIRIANAS



AS CIDADES DE FREI CARLOS

Por Zé Nilton*

Já lá se vão 39 anos da publicação do livro A cidade de Frei Carlos**, reunião de trabalhos esparsos do pesquisador Pe. Antonio Gomes de Araújo, clérigo da Diocese de Crato, Ceará.

Para o pesquisador de hoje a leitura dos textos dizem menos em comparação ao muito que dizem os anexos do livro.

Outro dia estava pensando por que o Pe. Gomes desinteressou-se em aprofundar sobre as gêneses da formação histórica do Cariri à luz de novos documentos coligidos à custa da sofreguidão de um pároco de aldeia, movido pelo entusiasmo e perseverança em fechar uma compreensibilidade sobre o Século XVIII no quadrilátero sul cearense?


De onde olho, hoje, muito fácil seria tripudiar nas falhas e nos hiatos cometidos pelo Pe. Gomes, em parte pelo seu modo intransigente e panegírico na defesa da História providencialista, e em parte pela fragmentariedade mesma de documentos elucidativos, o estado da arte de nossos primórdios.

De jeito nenhum. Teremos sempre uma atitude de profundo respeito àquele que se superou na busca de periodizar e por as coisas no lugar em meio a lacunas, descontinuidades, brechas, abismos, ausências e silêncios das fontes sobre nossa gênese.

O professor de História Pe. Antonio Gomes de Araújo compreendeu desde logo o sentido do fazer histórico na suma relativista que repõe a verdade histórica. Poderia ter ficado no céu das interpretações de segunda mão de como teria acontecido por aqui os nossos primeiros dias. Contrariamente, desceu ao inferno dos arquivos longínquos e poeirentos para fazer valer o sentido heurístico da ciência histórica e contrapor verdades.

Foi nessa que tomou a dianteira sobre fatos e acontecimentos da História do Cariri escrita por um Antonio Bezerra, um Dr. Pedro Thebèrge, um João Brígido e por fim a um Carlos Studart Filho.

Mas eu falei dos apensos do livro “A Cidade de Frei Carlos”. Pois bem, algo intrigante. Após escrevê-lo Pe. Gomes ajunta documentos importantes em torno da figura maior de seu intento, o Frade da Ordem dos Capuchinhos Italiano, Frei Carlos Maria de Ferrara.

Lá está que frei Carlos chegou ao Nordeste em 1736. Em 1738 a Junta das Missões, organismo de administração bipartite entre a Coroa e as ordens religiosas, discutia em reunião a necessidade de situar uma aldeia para o capuchinho. E revela que em 1739 frei Carlos já enviara uma carta à Junta das Missões, em Pernambuco, na qual “reclama que faça o ouvidor do Ceará a medição para a aldeia dos Jenipapos e que se chame o Pe. Ezequias Gameiro que já foi missionário dos Canindé para incorporá-los na mesma Missão”. (p. 80). Há outra carta do dia 21 de outubro de 1739 enviada por representante dos Jenipapos ao governador de Pernambuco de igual solicitação.

Sabemos que esses Jenipapos e Canindé estiveram na ponta da segunda fase da Guerra dos Bárbaros, a partir de 1712. Que os Jenipapos foram parciais dos Feitosa na luta contra os Montes. Que as duas tribos por falarem a mesma língua foram aldeadas em Quixadá, nas imediações do que hoje é Banabuiú. Que dali por força de lei seguiram para formar corpo social na elevação da Vila de Monte-mor, o novo da América, Baturité, em abril de 1764.

Então, Frei Carlos andou por estes sertões do meio fundando aldeias que seriam futuras vilas e hoje cidades. Quando se instala na Missão do Miranda, em 1740, trouxe saldos deteriorados de várias etnias. Índios alquebrados submetidos que foram a tantos desassossegos e violências. De vez em quando se ausentava para animar outros aldeamentos.

Pe. Gomes ressalta esta epopéia de Ferrara. Mas não o faz de modo enfático e apologético como fizera ao repercutir Antonio Bezerra quanto aos começos históricos de nossa cidade sob a inspiração de Frei Carlos.

Deixa uma sensação de abandono de sua luta na árdua tarefa de esclarecer o passado e ao mesmo tempo de uma profunda humildade como escritor pioneiro, quando diz: “Estas NOTAS modificam ou anulam, confirmam, contrariam ou enriquecem passagens constantes do texto do trabalho, cabendo ao leitor a tarefa do confronto”. Valeu, Pe. Gomes!

Quase terminando, Gomes trata os franciscanos como uma só Ordem. Hoje sabemos que franciscanos e capuchinhos são de ordens diferentes, com objetivos desiguais quanto à catequese no Nordeste. Não chegaram por aqui ao mesmo tempo. Bem, mas aí já é outra História...

Terminando, comecei com a frase “Já lá se vão”. Aprendi com um grande mineiro, o jornalista fundador do Diário de Minas, de saudosa memória, Newton Prates, quando me pedia para datilografar suas memórias para o jornal. Pois é como mineiro, cauteloso, que inicio uma série de despretensiosos artigos sobre a nossa formação histórica.
*Antropólogo. Professor do Departamento de Ciências Sociais da URCA
E-mail: figueiredo.jnilton@gmail.com
** Faculdade de Filosofia de Crato. Coleção Estudos e Pesquisas. Volume V. 1971

O quarto segredo de Fátima

Florípio sabia-se retrô, meio ultrapassado: como um urinol, uma espingarda soca-soca, um tabaqueiro. Mas que jeito ? Até que tentou se atualizar um pouco, mas desistiu. Homem agora é um tal de emo ou de homo; moça é apenas um tipo de leite condensado; veado é promoter! Desisto, tô fora, não dá prá mim ! Solteirão convicto, colecionava uma dezena de namoradas, escolhidas a dedo, pela variedade e não pela beleza ou pelo dinheiro. Caixeiro viajante aposentado, Florípio desenvolvera uma lábia de derrubar Boing 747. Língua de veludo, arrodeava a pretendida com técnicas de um mestre-salas, cobria-a de mimos, enviava flores e torpedos; sabia como poucos lamber a alma feminina e deixá-la em ponto de degustação. Daí, certamente, terá vindo sua fama de limpa-trilho, de tsunami, de terra-de-cemitério. Ultimamente , mais escondido do que puta de cardeal, envolvera-se com a esposa de um militar aposentado. Chamava-se Fátima. Esbarrara com ela em um supermercado e, enquanto perguntava sobre a seção de floricultura, ela pareceu interessada diante daquele romantismo obsoleto . Conversa vai, conversa vem e rolou um clima entre uma e outra bromélia. Florípio percebeu que enveredava por um esporte radical: o marido era brabo como um gato acuado e não aparentava ter cabeça apropriada para adornar-se de chifres. Mas clima é clima e o risco mostrou-se uma adrenalina a mais na relação. Nosso D. Juan nem atinou na proximidade ortográfica entre sêmen e sangue. E, com tanta boca de maçarico existente neste mundo de meu Deus, qual é o segredo que se agüenta incólume? Nem o de Fátima!
Há alguns dias o Cel Mascarenhas, o sócio de Florípio, marcou viagem para capital. Até hoje não se sabe bem se já desconfiava de alguma coisa e armou o alçapão ou se o flagra teria sido mero acaso. O certo é que nosso Caixeiro viajante estava à noite, deitado na cama com a namorada, de frozô, quando ouviu , apavorado, fortes pancadas na porta. A mulher, atarantada, percebeu, claramente, que a voz era nada mais, nada menos que a do marido. Nem teve tempo de avisar do perigo. A casa , de sobrado, não tinha muitas rotas de fuga e o quarto era no primeiro andar. E medo é bicho diminuidor de distâncias e encurtador de alturas. Florípio pensou com as pernas. Nu, pegou as roupas e os sapatos e saltou pela janela, sem contar conversa. D. Fátima maquiou, rapidamente, a cena do crime, antes de abrir a porta para o marido desconfiado que invadiu a casa procurando por uma caça possível, como um cão perdigueiro.
Por sua vez, Florípio, ao bater no chão, pareceu um jacu baleado, saiu numa na carreira desabalada, como se sentisse o bafo de Mascarenhas no cangote. Era noite alta e, para sua felicidade, as ruas estavam vazias. Quando dobrou a primeira esquina, no entanto, notou que a sorte o havia abandonado. Entrou justamente no meio da Procissão de Senhor Morto. Cidade escura, ainda sem energia, apenas as velas, nas mãos das beatas, emitiam uma luz fosca e bruxuleante.Florípio meteu-se no meio da turba e que jeito ? Fingiu-se de fiel, baixou a cabeça e saiu andando lentamente, balbuciando aquilo que se podia imaginar fosse uma oração. Passados alguns instantes, um velho que andava a seu lado, acompanhando o séquito, percebeu, por fim, a nudez do romeiro. Estupefato, perguntou que diabos era aquilo. Florípio, então, usando artes da profissão , desdobrou: estava pagando uma promessa. Disse que prometera aquela penitência, em caso de ter seu pleito atendido. O velho engoliu a explicação meio a contragosto, como se tratasse de farinha de mucunã. Mais alguns passos e, percebendo várias marcas vermelhas no peito e no rosto , parecendo baton, o velho continuou o inquérito: que diabos de vermelhão pelo corpo é esse, meu senhor? Florípio, então, falou que era penitente e que antes de vir à procissão, havia passado por um ritual de auto-flagelamento. O velho engoliu este outro bocado, a seco, com cara de quem vai se entalar. Confuso, fitou a nudez do vizinho , mais uma vez, e interrogou:
---- Meu amigo, se mal pergunto, que diabos de graça importante foi essa que você alcançou ?
Florípio, sem entregar os pontos, respondeu:
--- Meu amigo, vi nesses dias, o alagamento daquelas cidades de Pernambuco pelo rio Una. O povo passando fome, sem casa, sem roupa, no meio da chuva. Até os cachorros, carneiros, gatos, no meio da rua, sofrendo. Peguei-me então com São Expedito, aquele das causas impossíveis e de repente as coisas começaram a se resolver, graças a Deus. Tô aqui para pagar a minha promessa.
O velho, fitou Florípio de cima abaixo e fechou questão:
--- É verdade, camarada. O santo é milagroso. O povo todo já tá de casa nova e comida farta. Os animais abrigados. Tô vendo que até o seu pinto, depois do alagamento, já ganhou uma camisinha...

J. Flávio Vieira

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O aprendizado constante - Emerson Monteiro

Um modo especial de encarar as diversas situações dentro dos dias é olhar o mundo livre de julgamentos e revoltas desesperadas. Na razão direta do pouco domínio das pessoas com relação aos acontecimentos, virou norma inteligente não teimar diante dos obstáculos, por mais comuns que eles sejam. Sabedoria acima de tudo representa, portanto, paciência, conformação, humildade em face daquilo que ninguém consegue resolver por si próprio, deixando ao tempo abençoado soluções inesperadas e impossíveis. Como gostam de repetir os afoitos: - Devagar se vai ao longe.
No entanto, só dizer isso pouco significa em termos de compreender que mistério monumental sempre invadirá o chão onde pisa cada um, ainda que detenha faixas de conhecimento e organize com cuidado, mesmo em horas cinzas, os conceitos da natureza. Porquanto ninguém abrange tudo em suas investigações e aprofundamentos.
Nisso algumas respostas somadas apenas falam insignificâncias do tanto que o futuro reserva, no estudo constante dos segredos universais.
Algo, porém, já se sabe e atende suficiente do que até agora foi realizado pelos povos, e dá para o gasto de sobreviver. Há uma espécie de mínimo necessário que conduz o processo a resultados desejados. Para onde se virem, os humanos crescem na tecnologia dos séculos da experiência. As respostas permitem que um sistema continue alimentando a espécie, no que pesem críticas de ecologistas aos excessos pecaminosos.
Em resumo, existir e adquirir maturidade em tudo por tudo, desde sonhar, comer, viajar, simboliza esse itinerário valioso dos momentos históricos depositados nas folhas secas do tempo.
Conquanto tantos reclamem, não existe outro jeito senão aceitar as contingências, arrumar os pensamentos e cumprir as leis, período este de adquirir mais conteúdo arrecadado no decorrer das existências.
Dúvidas e obstáculos significam, pois, oportunidades para novas e emocionantes jornadas de consciência e contribuições, fatores essenciais ao aprimoramento de pessoas e civilizações.
Ah! Quanta perfeição habita nessas estradas solitárias do percurso vida!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Cariri Encantado-Protagonistas! recebe Ana Rosa Borges que soube ouvir do povo e agora vai nos contar o que ouviu.


Na oralidade é que são criados os mitos e lendas que desde os tempos mais remotos fundamentam a existencia do homem. Os deuses (bons ou maus) na oralidade tiveram sua origem. O fim da vida ou a eternidade lá residem. E foi na busca do novos mitos modernos que Ana Rosa abriu as "oiças" para ouvir e construir a sua monografia Narrativas Orais no Barro Vermelho que apresentou na Faculdade de Filosofia de Recife e que recentemente foi premiada pelo Ministério da Cultura e vai ser editada em livro. O que dos outros ouviu e lhe causou surpresa nos contos e cantigas daquele bairro simples do Alto da Penha é que vai tematizar o nosso programa.

ENCONTRO MARCADO

CARIRI ENCANTADO –Protagonistas!
A partir das 14 horas pelas ondas sonoras da Radio Educadora do Cariri, 1020 khz
Uma produção da Oca-Officinas de Cultura Artes e Produtos derivados e Revista Virtual CaririCult em parceria com a Radio Educadora do Cariri.
Apresentação: Luiz Carlos Salatiel

PELA INTERNET ACESSE:
www.radioeducadoradocariri.com

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Vital e seu violão

Vital é um típico brasileiro. Nasceu em Exu, cidade pernambucana localizada no sertão semi-árido nordestino, em uma família honrada.

 Perdeu a mãe ainda em tenra idade, com oito irmãos menores. Trabalhou na roça desde que entaludou, ajudando o pai - agricultura de subsistência (milho, feijão e arroz), complementada por uma pequena criação (aves e caprinos). Não pode, assim, persistir nos estudos.

Quando completou dezoito anos, seguiu a sina dos irmãos mais velhos e foi tentar a sorte no Sul Maravilha (sic), no trabalho pesado e mal-renumerado da construção civil e outros empregos similares, como “peão” – portas de entrada e saída de quase todos os migrantes nordestinos.

Mas Vital ousou no sonho, com uma paralela vida de músico profissional. Aprendeu a tocar violão e trabalhou na noite, tocando em shows, em churrascarias e onde houvesse espaço para mostrar seu talento. Passou vinte e oito anos em São Paulo. Um dia retornou a suas raízes, para voltar a trabalhar na roça, plantando milho, feijão, arroz, andu, fava e alguns legumes. Assim sobrevive e sustenta sua pequena prole, formada pela mulher e três filhos ainda menores de idade.

Mas Vital pouco se lamenta, a não ser do fato de não ter encontrado espaço para trabalhar com música. Mas não desgruda do seu violão.

Um final de semana atrás, Vital, que é meu primo legítimo, veio ao Crato, visitar sua tia Creuza, que é minha mãe e irmã de seu pai, meu tio Milton. Não tinha dinheiro nem pra pagar as passagens. Mas não se fez de rogado e as conseguiu na prefeitura. Trouxe, é claro, o seu violão.

Fazia muito tempo que não o via. A última vez, talvez, foi numa de suas idas e vindas de São Paulo, quando esporadicamente vinha visitar o pai e os irmãos que aqui ficaram.

Convidei-o para um almoço. Antes, porém, Vital desfilou um vasto repertório, notadamente de músicas de Amado Batista, Bartô Galeno e Flávio José, entremeadas de um e outro sucesso de Luiz Gonzaga, Raul Seixas e Reginaldo Rossi.

 No fim da tarde, fui deixá-lo no ponto do ônibus. Ele disse que teria que ir até a cidade, pois tinha deixado sua bicicleta guardada em uma casa. De lá pedalaria cerca de uma hora até chegar ao Altinho, sítio onde mora, em terra que pertence ao seu pai.

Nada - Por Carlos Rafael

Hoje não vou falar de crise. Nem de minhas desesperações. Aliás, hoje eu não quero falar de nada. Nem pensar em nada. Nem fazer nada. Ou coisa nenhuma. Somente ficar ao léu. Sem preocupação. Sem elucubrações. Repito: nada, nada, nada.

Queria experimentar o nirvana. A inércia. A apatia. Queria me desnudar de todos os preconceitos. Ser um zé-ninguém. Um pária. Não ter ideologia. Não sentir fome. Nem sede. Nem dor. Nem dó do meu cachorro. Nem saudade dos meus entes queridos e ausentes.

Mas, no fim do dia, queria fazer algo sintomático, esplêndido, único, insofismável. Queria escrever um verso, livre e verdadeiro, bem próximo a este de Ribeiro:

"Partir! Partir também! Que ansiedade esquisita
de desaparecer pela água infinita!"

E depois dormir. Dormir tranquilo.

karimai eterno!

Sétimo dia de Luiz Karimai no patamar da eternidade!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Imagens - Emerson Monteiro

Elas vêm de novo se achegando aqui por perto espraiando pelo firmamento do juízo, e tomam conta desse universo inteiro de mim. Os fragmentos amarelecidos nas lufadas de vento em folhas sacudidas, multidão impaciente, dão mostras de vida nas árvores da Serra. Junto, cantos esparsos, pipilados intermitentes de aves friorentas, ponteiam cada instante, assinalando o rufar do relógio preso dentro do guarda-roupa indiferente na condição da casa. E fiapos soltos de pensamentos voam libertos pelo ar, quais acordes sincopados de velhas sinfonias do mais distante passado. As cicatrizes do aprendizado, que a história oferece ao sentimento porejam de interrogações, nos toques abandonados de reluzentes aventuras arcaicas ao sol da manhã fria. São porta-lápis de aulas anteriores que invadem o querer da gente de falas, lembranças de filmes, livros, poemas, numa sala vazia das pessoas que se ausentaram, deixando saudades contundentes na existência audaz, enquanto o barco, impávido, seguia sua jornada-correnteza nos caminhos a acima.
Imagens grudadas nas paredes da memória que ardem, pois, notícias agitam o esquecimento ainda meio adormecido. Tantas palavras aqui depositadas em tomos empoeirados, nas prateleiras das coisas fugazes, biblioteca milenar de quimeras, sonhos, névoas, estremecimentos, motores eternos, quase trilhos, que circulam dimensões consistentes, acordes, cantigas, histórias, palmas acesas, o farol aberto das enseadas, grilhões rompidos e normas restabelecidas.
Cruzar pontes levadiças, cavaleiros andantes, vultos escondidos sob capuzes misteriosos, sombras que desfilam na retina imortal de olhos ensolarados, alvoradas festivas ao gosto próspero do viver sorridente que brinca semi-deuses conosco quadro a quadro.
Quantas cartas vagam silenciosas, a transcorrer os espaços aquecidos da alma. Quantas vagas... Então, número infinito de perguntas pulula na tela verde-azul em gotas suaves de ondas quebrando ao acaso, luzes vindas bem de dentro; com isso, mostram avisos de outras formações em movimento, mesma sequência de objetos ofertados às portas e janelas entregues no sereno circunstancial das horas.
Um pulsar de veias no só cuida de aumentar o cenário interior entranhado pela música do vento. Estrelas que latejam céus de ritmos persistentes. Contudo, cheiro de vida preenche o bojo dos sentidos, circula em volta do mastro do coração e desce pelas encostas adormecidas do corpo, tatuando marcas indeléveis, gravadas para sempre na eternidade de um todo coerente sem desaparecer ingrato nas curvas macias e carinhosas dos lençóis.
OBS.: Notas de uma madrugada fria de domingo, inícios do mês de agosto de 2010.

AÉCIO RAMOS NO CARIRI ENCANTADO – Protagonistas!

(Na foto, Aécio (de boné azul) atua com Cacá Araújo em cena do filme As Sete Almas Santas Vaqueiras, média metragem de J.Bola Bantim)

Por mais que tivessem me dito das habilidades desse artista ainda seria pouco para defnir com exatidão quem é Aécio Ramos. Com sua humildade escancarada acumula experiência de vida que comprova com fotos, cd, recorte de jornais que carrega feito rapadura doce no seu bornal de artista cangaceiro dessa caatinga caririzeira. Coversa, canta, talha, ensina, transforma o seu quintal em ateliê, e muito mais, que até me parece ter acumulado e trazido de outras vidas passadas tanta informação: 48 profissões que diz dominar(gosta de impressionar com o número)!
Pois então, é com Aécio Ramos que nos encontraremos nesse Cariri Encantado – Protagonistas!, do dia 06 de agosto, a partir das duas da tarde, pelas ondas sonoras da Rádio Educadora do Cariri, 1020khz.
Encontro Marcado:

Cariri Encantado – Protagonistas!
A partir das 14 horas pelas ondas sonoras da Raido Educadora do Cariri, 1020 khz
Parceria da Radio Educadora do Cariri com a Oca-Officinas de Cultura Artes e produtos derivados e Revista Virtual CaririCult.
Apresentação: Luiz Carlos Salatiel

Magma


“Para Luiz Karimai: mestre de Magma, artífice de Luz”

O túnel ...a treva... a luz ! Adiante a montanha : meio enigma, meio magma ! Empertiga-se desafiadora, sinuosa como um dromedário: sem palavras, sem mapas, sem tutorial. O homem, no entanto, intuitivamente, percebe : é preciso escalar. Por que? Para que? Em busca do que ? Apenas mira aquele que lhe parece o ponto culminante e, num perigoso rapel, inicia a subida. No fundo, imagina que, chegando ao topo, alguma surpresa o espera, atrás das nuvens que encobrem o pico, como um Kilimanjaro. Na travessia, encontra-se, eventualmente com outros alpinistas, que seguem caminhos paralelos. Cada um deles almeja atingir um pico diferente da mesma montanha que lhes parece , na sua particular visão, sempre o mais alto e o mais promissor. As versões variam também, imensamente, sobre o prêmio auferido ao topar o cume: um tesouro; a soberana vista altaneira, em trezentos e sessenta graus; a possibilidade de avistar além de horizontes jamais imaginados. Alguns até, ascendem tangidos pela certeza de quem do outro lado do cume, por detrás das leitosas nuvens, na face oculta da montanha, esconde-se o éden, um Sangri-lá de eterna felicidade.

A perigosa ascensão faz com que muitos viandantes se fixem, cuidadosamente, nas escarpas e, assim, perdem a paisagem que se abre voluptuosamente à frente. Outros, ao contrário, embriagam-se pela vista privilegiada, tropeçam facilmente nas pedras e oferecem-se à rapacidade do abismo. No topo, a montanha, passo a passo, parece se tornar mais inacessível. Os alpinistas vão rareando: alguns escorregam nas pedras pontiagudas; outros são engolidos por avalanches; muitos tragados pelo ar rarefeito; tantos não sobrevivem aos rigores do frio. Percebe-se, com clareza, que aqueles que escolheram escalar os picos mais altos, carregam consigo as maiores taxas de insucesso.

Entre um e outro acampamento, os sobreviventes dividem as esperanças do galardão a ser alcançado. Aqueles que buscam , no alto, uma vista privilegiada e os que almejam o éden os aguardando no lado escondido da montanha, desenvolvem, entre si, uma forte solidariedade: compartilham mantimentos e remédios e trabalham em equipe, mesmo caminhando em direção a pontos díspares da mesma cordilheira. Os muitos que pensam encontrar o tesouro, não se afinam: brigam, fornecem informações desencontradas aos companheiros, montam armadilhas para os concorrentes, estabelecem uma perigosa competitividade entre si.

Um dia, fatigado, alquebrado pela jornada, o homem chega ao topo do pico escolhido. Percebe, com a clareza da neve, que nenhum prêmio o espera ali. O gelo, o frio : seu legado. Sequer consegue beneficiar-se da paisagem que podia se oferecer lubricamente do alto, não fosse a cerração implacável. Tem a plena certeza de que o resultado não há de ser diferente com os outros alpinistas. O prêmio estava na travessia e não na chegada; na busca e não no encontro. Placidamente, encaminha em direção à face oculta da montanha. Ali onde o poderia existir o éden. Os temores já não existem : tinham todos tombado na escalada. Ele desaparece, silentemente, em meio ao flog. Como se a névoa se fizesse de esquife. O magma, a treva... A Luz? O Túnel ?

J. Flávio Vieira