Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A questão carcerária - Emerson Monteiro


Um dia, pelas ruas de Mangaratiba, cidade litorânea do Rio de Janeiro, visualizei o passeio dos detentos da Ilha Bela, antigo presídio hoje desativado. Quadro marcante, cortejo de homens válidos, corpulentos, em marcha batida, controlados por guardas e cães, a percorrer trechos daquela cidade. Alguns traziam consigo peças de artesanato de própria fabricação, oferecidas aos circunstantes por preços ocasionais. A cena ficou gravada para voltar ao pensamento quando, como agora, enfeixo a intrincada crise penitenciária brasileira. Aqueles zumbis, de olhos vazios, trajes encardidos, quais reses de tosquia, trastes da culpa, apenas arrastavam o tropel do destino à luz da vontade dos homens.

E revivo também a sensação cotidiana dos noticiosos quando exploram o mundo cão. São raros os meses em que deixam de ocupar o cardápio as rebeliões nas celas, com registros de fugas, incêndios, perdas de vidas e homicídios.

Tais aspectos percebidos significam o estrangulamento do sistema penal; refletem a estrutura da sociedade como um todo, onde deficiências indicam muito chão ainda para percorrer até a perfeição final do processo vida.

Cheira mesmo a repetição dizer que as cadeias, quais viveiros de pássaros indomáveis, converteram-se no campus da monstruosa universidade do crime, imagem conhecida, onde os apenados ali encaram desafios primitivos junto de outros em condições físicas e morais deploráveis. Daí, qual onda avassaladora, estranho relacionamento impõe e multiplica a morbidez de seres vencidos, depois lançados às sarjetas, num ciclo de miséria que aumenta os custos do subdesenvolvimento mórbido.

Intenções honestas de resolver o problema, contudo, não eliminam o atraso dessa área, vistas experiências nos países ricos, mesmo sabidas quantas falhas lá também persistem.

Planos que se cogitem devam sempre vincular a participação efetiva da força de trabalho reclusa às celas, estagnando a capacidade produtiva. Em resposta, as sentenças assim deixariam de inutilizar a mão de obra prisioneira, sobrando ao Estado o mérito de soluções criativas e geração de riqueza, alimentando e estabilizando as contas da instituição punitiva, além de profissionalizar quem chegar, de comum, sem ofício. As prisões agrícolas demonstram a viabilidade desta idéia.

Restam imaginar perspectivas novas para problema tão arcaico. O gesto de segregar aos calabouços, sem outras preocupações racionais, apenas mascara uma chaga que transborda de dor e clama decência. Compromisso pesa, pois, sobre todos os ombros, sabendo que o zelo da liberdade vem assegurado como atributo essencial, dom divino que cabe manter, sobretudo a quem necessita desde criança das poucas e limitadas oportunidades vitais.

domingo, 25 de setembro de 2011

As cidades de Chico Buarque - Emerson Monteiro


Cristina Couto reuniu em livro (As cidades de Chico Buarque) fragmentos de uma época histórica do Brasil recente e intercalou-os com páginas das músicas de Chico Buarque de Holanda e. deste modo, criou belo painel que bem representa a fase crítica dos anos de chumbo. Nas marcas que anotou dos passos do poeta nos bastidores da convulsa vida nacional, a escritora conta em linguagem eficiente o que vencíamos do medo e da censura feroz para trazer ao povo os espelhos urbanos que alimentavam apreensivas esperanças e resistência.

Perante o jeito que exercita, Cristina de Almeida Couto, membro da Academia Lavrense de Letras, professora universitária e jornalista, consolidou no seu trabalho a escritura poética de Chico Buarque na visão acadêmica suficiente de dizer o que aconteceu no imaginário da criação artística, contradições e vislumbres doridos, na fase extrema, totalitária. Caminhava-se pelas ruas deserdados; atravessavam as lamúrias de um modelo econômico de época, à força dos poderes internacionais na república ansiosa de algum crescimento material.

Talhes profundos, no entanto, feriam por dentro a alma, sobretudo de jovens da classe média embalados nos sonhos imaginários de liberdades civis ideais, frustradas na quebra institucional da luta brasileira.

Trabalhou com êxito o tema desse encontro das duas vertentes, do real no cotidiano, e das letras que o interpretavam através palcos e discos, a transmitir vozes gritadas ao enlevo dos ritmos novos – misturas de samba do morro, bossa nova e inventividade nativa.

Feliz a executar o projeto estabelecido, Cristina nos permite viver ou reviver a composição popular no mister desses acontecimentos, versão do coração de quem atendeu consignar a poética na história dos vencidos daqueles instantes.

Uma viagem técnica e sentimental, pois, através das letras das cantigas... exercício de fixação salutar e digno de quem deseja guardar as lições amargas da nossa geração urbano-industrial.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Hannibal em Matozinho


Assilon Cananéia tremeu do topete ao dedão do pé. De repente, ante as invectivas de D. Soledade, percebeu : tinha sido pego com as cilhas da cangalha frouxas. Ficou de um lado para outro, como galinha procurando canto para pôr o ovo. Parecia que ensaiava os passos cadenciados do Raggae, feito papagaio em areia quente. E agora? Soledade tinha sido categórica, firme, definitiva: amanhã você tem que se confessar, Si-Si, senão não vai poder comungar no casamento de Zuleika! Naquele exatíssimo momento se tinha interposto a última bola que lhe formatara a sinuca de bico. Ainda tentou contra-argumentar com a mulher. Já tinha tanta gente para a fila da hóstia, carecia lá mais um pecador no pé do padre? Soledade enfureceu, fez cara de cachorro pé-duro quando sente cheiro de onça maracajá. Aquilo seria uma desfeita sem tamanho! Onde já se viu? A filha no pé do altar e o pai esborrotando de pecado, se recusando a ajustar as contas com o Salvador? Pois bem, ameaçou a esposa: Zuleika já disse, seu miserável, se o pai não se confessar, ela se recusa a entrar na igreja, prefere viver junta com Senevaldo. Filha de pecador, tem que seguir os rastros do pai. A arapuca estava armada.

Assilon saiu meio capiongo para o trabalho. Cobrador de ônibus por longos anos, atualmente esquentava o banco no escritório da “Viação Rola Cachecha”. Não lembrava a data da última confissão. Ficou pensando na ruma de pecado que ia ter que fazer desfilar nos pés do padre. Alguns cabeludos como jumento novo. Cidade pequena, todo mundo conhecia todo mundo, ficou pensando no constrangimento que iria passar. Primeiro relacionado com o tempo da entrevista que já assustaria todos da fila da confissão e depois com o tamanho da penitência que o rigoroso Padre Arcelino lhe sapecaria. Preocupava-se, sobremaneira, com um namorico escondidíssimo que entabulara com uma beata da igreja, D. Zulena, que, por uma coincidência terrível, era sobrinha logo de quem ? Do vigário da cidade: o brabíssimo Arcelino. Convenhamos que Si-Si estava carregado de muitas razões para entrar no trabalho daquele jeito: mais prá baixo que diferencial de cururu. Os colegas perceberam o carrego , mas ignoraram, não tinham intimidade suficiente para escarafunchar aquele maribondo de chapéu. Havia, no entanto, um amigo mais chegado . Pois bem, Deusamém , montado numa confidencialidade de muitos e muitos anos, cutucou o vespeiro, sem medo das ferroadas. Si-Si , então, com os problemas já vazando pelo ladrão, contou tudo. Estava preocupado com a tarefa inadiável do dia seguinte e temendo a repercussão. Deusamém, macaco velho, saltou de lá com uma idéia brilhante. Lembrou que estava na cidade, visitando o pároco, um Padre alemão, recém chegado ao Brasil. Ainda não falava direito o português, mas teimava em confessar os fiéis. Deusamém acreditava que o Padre Nossinger Radikoff seria uma ótima saída, pois se não falava bem o português, imaginem o Matozinês, um dialeto dos mais intrincados e difíceis do mundo ! Assilon respirou aliviado e voltou para casa mais tranqüilo. Deusamém arranjara uma saída genial. Primeiro a demora seria facilmente compreendida pelo choque lingüístico entre confessor e confessado, depois havia a possibilidade de absolvição plena , sem demais protocolos e burocracias.

No dia seguinte, um contrito Assilon tomou piedosamente lugar na fila da confissão. Quando chegou sua vez, ajoelhou-se candidamente e esperou o palavrório de Nossinger que não demorou a ser escarrado da goela, com aquele sotaque forte de quem se entalou com farinha seca:

--- Meurr Filhorrr , digarr seusrr pecadorrrss!

--- Seu padre eu botei um “gato” na água lá de casa e no trabalho como cobrador, carrego um monte de “cabrito”no ônibus!

--- Meurr filhorrr, deixe de marvadezarrr com os bichinhosrrr de Deusrrr. Não derrr banhorr em gatorr não, viuuu? Agora carregarrr cabritooorr, meu filhoorrr, não serrr pecado não! Querr mais ?

--- Seu padre, quando eu vou para a roça, vez por outra eu como uma cabrinha que eu crio por lá.

--- Meurr filhorrr, isso não serrr pecadorrrrr, carne de vacarr, de boderrr, de porcorrr só serrr pecado na Semanarr Santarrr... Querr mais, meurrr filhorrr?

--- Quando não é a cabra seu padre, gosto de pelar uma sabiazinha...

--- Marvadezarrrr com os bichinhorrr de Deus, seu Assilonrrrr, de novorrr? Querr mais ?

--- Seu padre, eu tô comendo uma beata, é pecado?

--- o quêrrr ? Vocêrrr é caniballll, hein?

--- Não seu padre, eu tô fazendo um calamengau com ela toda noite!

--- Com elarrr quem ???

--- O calamengau é com Zulena !

--- Mingaurrr de Maizenarrr não é pecadorrr não seu Assilonrrr !

--- Mas seu padre, eu tenho feito com ela é por trás...

---- Porrr trássss? Arrrrr seurrr Assilonrrr ! Pois o senhorrr é um sujeitorrr traiçoeiroorrrr, não errrr ?...

No dia seguinte, devidamente purificado,ante os olhares de gratidão de D. Soeldade, o ex-traiçoeiro, ex-canibal, ex-judiador de gatos e sabiás , o ainda traiçoeiro Assilon lá estava pronto para papar a hóstia sagrada no casamento de Zuleika e Sonevaldo .

J. Flávio Vieira

P.S. – De uma idéia original de armando Rafael este texto é dedicado ao Capitão Ariovaldo Carvalho, Cidadão Matozense.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Duas faces de uma só natureza - Emerson Monteiro


A mulher e o homem são aspectos distintos, porém integrais, da natureza que os dois formam e se repetem ao infinito. Houvesse ausência de um, e deixaria vazio de não ter tamanho, a ponto da total interrupção dos acontecimentos biológicos que representam a longa história de todos nós.

No decorrer do tempo, contudo, devido aos motivos dos que buscam aprender das condições normais, invés de somar, excluem e criam divisões, a pretexto de reinar a fria competição, a concorrência desleal, da selvageria de um dos sexos, quando eles mesmos sozinhos se completam.

As características da mulher e do homem representam perfeição em termos de organização social, na elaboração da célula mãe da família e dos grupos. De sã consciência, ninguém levantará bandeira de superioridade entre esses dois aspectos essenciais do casal humano à procriação e educação das gerações, no sentido da construção ideal de uma sociedade justa.

As definições de cada um desses distintos elementos compõem a vida e pedem apenas que se respeitem no tanto certo de estabelecerem a felicidade ideal das pessoas. Exemplos haverá aos turbilhões de quem compreendeu tais características próprias da mulher e do homem, frutos da ciência universal. Isso põe a pensar no quanto ainda precisam conhecer dos segredos da paz, até rezar do jeito correto nas cartas das existências coletivas.

A riqueza dessas peculiaridades dos sexos rasga vistas dos que querem aprender o objetivo da lei da Criação, seus sabores e suas normas dignas da mais lúcida exatidão matemática.

Ao observar, pois, a ação amistosa entre os irmãos, o viajante das estrelas conclui que sem a mãe ou sem o pai nada existiria para merecer nome de filhos, e nenhuma história nasceria antes de tudo para se conhecer.

Eis, por isso, qual a solução das crises que sustentam a ilusão de serem opositores as duas manifestações dos que vierem morar algum tempo neste chão comum de dois.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O dinheiro e as religiões - Emerson Monteiro


Aonde chegar a mão humana ali ocorrem transformações por vezes desencontradas, e nem sempre para melhor. As mudanças de rumo daquilo visto nos inícios qual valores importantes sujeitam inverter seus objetivos originais. A invenção do dinheiro, por exemplo, demonstra isso com uma clareza meridiana. Em princípio visto qual rara solução para circular a riqueza na sociedade, depois endureceu os corações e gerou graves riscos à paz dentro das famílias e no seio das classes sociais. Parecido até com outro fenômeno que consta do livro bíblico do Êxodo.

Quando Moisés conduzia os descendentes de Abraão através do deserto da Arábia, na saída do Egito, o que durou 40 longos anos de agruras e apreensões, houve momento quando a fome pareceu dominar aquele povo de milhares de pessoas.

Em apuros, pediram a Deus que lhes salvasse da rude provação. Nos dias, então, logo cedo da manhã, passou a cair do céu o maná, um alimento misterioso, com o qual se alimentavam e sobreviveram.

No desejo de garantir os dias seguintes, os judeus quiseram guardar esse pão, e foram alertados de não o fazer. Aqueles que desobedeciam depois apenas achavam restos estragados. Como guardavam o sábado, grãos caídos nas sextas-feiras resistiam bem até o domingo.

Noutro trecho bíblico, Jesus afirma: Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.

Isto ponderamos em vista dos excessos praticados, na época de hoje, com relação ao desespero de tantos para reter o dinheiro, inclusive no seio das religiões, desvirtuando os propósitos e valores da vida em grupo, isso tão só para chegar ao poder e controlar para si as multidões feitas rebanhos animais. Quantos se perderam feio na jornada do trabalho coletivo por causa dessa fome alucinada do vil metal, e distorcem as bênçãos das riquezas.

Há nisso sérias lições a tirar e modificar as atitudes, no afã de construir o futuro. Porquanto, noutra rara e bela afirmação, Jesus considera: Não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir?

A ideologia praticada nesta hora, contudo, desvirtua princípios e insufla o culto exacerbado da matéria e dos capitais, iludindo também os dirigentes religiosos e dificultando para muitos a crença dos ensinos eternos.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Ciência da alimentação ideal - Emerson Monteiro


Em face dos excessos gerados pela indústria, que só prioriza os lucros em detrimento da qualidade de vida e da saúde, mais que antes o cidadão médio precisa desenvolver o conhecimento daquilo que utiliza para se alimentar. Isto, quando bem respeitado, possibilitará tipo saudável e maior aproveitamento da existência. Caso contrário, viver se transforma em um calvário constante à medida que passa o tempo e os resultados, no corpo, do que utilizamos de alimento mostra os seus reais efeitos.

Um tanto dos produtos vendidos em lojas e supermercados não estão próprios para o consumo humano, apesar dos órgãos oficiais assim atestarem. Na verdade, essa propriedade para consumo é relativa ao que a febre do lucro ditar, pois esses cuidados para com os valores da saúde andam afastados de qualquer conceito ideal de alimentação adequada.

Primeiro de tudo, os conceitos alimentares do Ocidente guardam pouca ou nenhuma identificação com a natureza original da vida. Vender sempre foi a lei da tradição alimentar ocidental. Tudo começou quando traziam das Índias as famosas especiarias para comerciar nos mercados europeus, dentro das leis da oferta e da procura do Mercantilismo dominante. A regra básica, pois, seria lucrar a todo custo.

Mudadas as rotas do Caminho das Índias, os impérios chegaram às Américas, e o que trataram de desenvolver, as usinas de açúcar, elaborando substância hoje considerada o principal agente cancerígeno utilizado pelas pessoas humanas, o açúcar refinado, destruidor do equilíbrio orgânico. Enquanto dizimaram as populações nativas, incorporando poucos ou nenhum dos conceitos de uma culinária trazidos no correr dos tempos de uma tradição do uso correto dos elementos naturais, acumulada pelos séculos.

Por isso, os orientais vivem em mais harmonia com a saúde. Buscaram aprender dos antigos o bom uso dos alimentos. Melancólico se entregar aos braços dos industriais e comerciantes sem usar a consciência da boa alimentação, o que evitaria milhares dos males físicos que enchem hospitais e destroem vidas desde o nascedouro.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Boff(e)


Quinca de Liliosa é um jornalista nato sem nunca ter esquentado nenhum banco de escola. Como bom profissional, corre atrás da notícia e tem uma sincronia enorme com os fatos que narra. Invariavelmente – sabe-se lá como --- esteve presente nos acontecimentos de que faz as reportagens, talvez para que isso dê uma confiabilidade maior às matérias. Não foi coisa de ouvir dizer, vi com esses olhos que a catarata ainda há de cegar ! Por mais de uma vez foi pego no contrapé, constatando-se o incrível dom da onipresença: estava em dois lugares diferentes , no mesmo instante, em que teriam havido dois acontecidos diversos. Claro que, como bom jornalista, Quinca punha tempero na reportagem : aumentava um pouco dali, esticava um tanto dacolá, acrescentava tramas paralelas, sabia perfeitamente que sem um pouco de ficção o jornalismo não é possível.

Semana passada , na praça Siqueira Campos – a difusora de Liliosa – ele me chegou com os olhos brilhando. Trazia uma notícia quentíssima. Controlou um pouco a ansiedade, enquanto esperava que a platéia se formasse ao derredor. Depois, quando já havia córum regulamentar, iniciou a narração. Primeiro, como sempre, fez ar de mistério: “ Sei não ! A coisa é séria, amigos, acho que é melhor não contar! Isso pode trazer problemas para mim!” Acostumados com o prefixo de Liliosa, os circunstantes nem tremeram, sabiam do que era preciso e aí começaram a insistir um pouco. Finalmente o nosso jornalista acedeu, não antes que todos jurassem, de pés juntos, que aquela história não ia sair dali: era segredo de estado. Preenchido o contrato que tinha muitas cláusulas leoninas, Quinca respirou fundo e, após um estudado silêncio perfeitamente teatral, desfiou o segredo, guardado a sete chaves como os dos meninos de Lurdes.

--- O Hospital Regional do Juazeiro está abarrotado de acidentados !

A platéia , imediatamente, armou um ar de incredulidade! Já? E o hospital foi feito num foi prá bater retrato, não? Eles atendem gente , lá? É? Pensei que fosse só um estúdio fotográfico! -- Saltou, ironicamente, o velho Zé Idéia de lá do seu canto!

--- Está cheinho, minha gente, foi um acidente terrível. Pernas quebradas, braços retorcidos, cílios arrancados, silicones pelo chão, perucas prá tudo quanto é lado! Só de plumas, paetês e purpurinas retiraram da porta do Regional mais de três caminhões.Sem falar em 2855 plataformas que os carroceiros carregaram. E os gritos de dor são de dar pena. É ver umas dez ambulâncias com os alarmes ligados! UEMMMMMMMMM!

O que teria acontecido? Perguntaram-se todos. Desfile de carnaval não existe nessa época. Alguma confusão em baile de gala? Mas baile durante o dia, com todas aquelas roupas de noite e logo onde? No Juazeiro? Liliosa mantinha o segredo estrategicamente. De onde teriam saído tantas senhoras prontas, em pleno dia e como fora possível um acidente daquele porte, com tanta gente fina e importante junta no mesmo momento? Aos poucos, Quinca foi revelando o resto da história, como se se tratasse de um strip-tease.

Não, não se tratavam de senhoras em stricto sensum. O acidente, na verdade, acometera um incontável número de rapazes alegres. A platéia, imediatamente, associou à Parada Gay do Juazeiro que iria acontecer naqueles dias. Caíra um carro alegórico? A estátua de São Sebastião despencara de um dos carros no meio das moças donzelas? Teria sido mais um ataque da desprezível homofobia ainda tão presente na nossa sociedade? Liliosa, no entanto, mais uma vez, desfez a interpretação rápida da platéia.

--- A Parada Gay de Juazeiro, amigos, só vai se realizar amanhã, fiquem tranqüilos que todos vocês não perderam , não! Ainda vai ser possível desfilar, viu?

O que teria, então, ocorrido? Como teria sido possível tamanho acidente, nas vésperas do evento? As bichinhas aos berros, chorosas, lacrimosas, cheias de escoriações e hematomas? As roupas de gala aos farrapos? Foi no aeroporto que ocorreu o pavoroso desastre! ---esclareceu nosso jornalista. Um acidente aéreo com os GLTS que vinham para a Parada, imaginaram todos.

Quinca, após um breve silêncio, mais uma vez dissuadiu-os. Não, não tinha sido isso! Depois de um silêncio cientificamente programado, Liliosa, por fim esclareceu a causa da calamidade. Estava mais de um milhão de rapazes alegres no aeroporto regional do Cariri esperando os companheiros que chegariam para a Parada Gay do dia seguinte. Todos foram a rigor e se espremiam , num calor infernal, só aplacado pelos incontáveis leques que ritmicamente flanavam. Junto, havia um pequeno grupo de professores que aguardava a chegada do grande Leonardo Boff que vinha, naquele dia, proferir uma memorável e concorridíssima palestra no Ginásio Poliesportivo. Arapuca estava armada, amigos. Sem ter conhecimento da vinda do teólogo, no mesmo vôo, de repente deu-se o estouro da boiada. As bichinhas saíram em desabalada carreira em busca da sala de embarque e foi um pisoteado só: cílios pelo chão, penas de pavão, silicones, perucas, plumas e paetês. É que , inadvertidamente, uma professora ao avistar o Leonardo que já havia desembarcado e se dirigia à sala de embarque, caiu na besteira de gritar:

--- Vejam, o Boff já vem ali, meu povo ! Ele é lindo !

J. Flávio Vieira

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Números especulativos - Emerson Monteiro


Vimos outro dia, em comentário circunstancial, que os atuais países gastaram só durante o ano de 2010 a bagatela de trilhão e meio de dólares nos gastos de armamentos. E que dita quantia corresponde a 16 vezes todo o meio circulante da moeda do Brasil, esbanjamento de não ter tamanho daquilo que a natureza forneceu para alimentar o ecossistema do planeta Terra, jogado fora assim à toa, prática por demais escandalosa, imbecil, para custear a fome da cólera dos que comandam a farra do poder ao preço da brutal violência.

Pois bem, cresce nos mercados mundiais, desde o ano de 2008, das piores crises econômicas que há notícia, ameaçando, inclusive, as nações ricas da Europa, motivo de apreensão dos que querem enxergar na história solução de curto prazo.

Contudo, ato contínuo, os líderes ocidentais notaram detalhe que lhes chamou a atenção... A China conseguiu, nesses tempos depois da Revolução de Mao-tsé-tung, amealhar reservas monetárias em torno de três trilhões de dólares, o suficiente para cobrir a fome ocidental pelo período de dois longos anos das suas guerras de conquista.

Chineses, no entanto, parecem avaliar se querem mesmo investir capitais longe de seu território, pois sabem o risco que correrão nos braços incertos dos estrangeiros prepotentes. Estudam calados o sacrifício, hora crítica de muitos interessados naquilo que obtiveram ao correr do trabalho de tantos.

O prejuízo acumulado de italianos, por exemplo, chega além de um trilhão de dólares, a imaginar os outros envolvidos na situação coletiva; Espanha, Portugal, Grécia, economias antes seguras, também cruzam tempos difíceis. Quanta fortuna e sucesso desapareceram através dos números vazios das ilusões perdidas...

Os chineses que se cuidem, pois, diante da pressa de quem subira na riqueza destruindo a paz com políticas armadas e destruidoras. Ao bom senso caberá, o quanto jamais aconteceu, lugar das atitudes coerentes, no nome da continuação da existência e da fraternidade entre as pessoas... Que alimentem, senhores chefões, a boa vontade à luz da razão, em benefício de todos nós seres humanos.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Madre Feitosa: A Dignidade Humana - José do Vale Pinheiro Feitosa

Em treze de setembro de 1921 nascia no coração dos Inhamuns uma das figuras mais ilustres que o Cariri teve no século XX e princípio do atual século. Falamos de Madre Feitosa, ou Maria Carmelina Feitosa, nascida em Tauá e criada em Arneirós. Filha de Crispim Morais e Maria Josina Feitosa, Madre Feitosa teve a sua terceira morada em Crato onde a encontramos até hoje cercada de festas pelo seu aniversário.

Não pelos laços de parentescos ou apenas pela grande amizade que minha família tem por ela, a verdade é que não teria oportunidade melhor para retornar a escrever nos blogs do Cariri que não os 90 anos de Madre Feitosa. Estive ausente do Rio desde a metade do julho passado e marco minha reestréia em companhia de uma grande figura.

São memórias, mas daquelas memórias que ficam mesmo quando o mais extremado esquecimento nos acontece. Era no quarto final dos anos 50 e fomos eu, minha irmã e minha mãe passar uns dias em Icó na companhia de uma tia que na ocasião morava ali. E o Icó causa impressão em qualquer um.

Foi ali que vi Madre Feitosa pela primeira vez, numa casa das irmãs de Santa Teresa, já guardando uma doçura que imaginei apenas efeito de sua religiosidade. Ela continua assim, uma fala mansa, gestual econômico e recatado e todos nós somos tomados de surpresa com a grande executiva da educação que ela é.

Madre Feitosa, pela duração de sua obra e pela grandeza das instituições que dirigiu, talvez seja uma das mais longevas dirigentes de ensino do Ceará. Não apenas no Crato ou somente no Cariri. E arrisco mais, talvez seja uma das dirigentes mais antigas em atuação no Estado, com escolas financeiramente equilibradas e que não cessam suas atividades.

Posso está enganado, mas Madre Feitosa, deva ser o dirigente em escola religiosa que mais tempo está em atividade, por estimativas não checadas, é possível que nenhum reitor do Seminário, diretor dos colégios religiosos, particulares ou públicos tenham superado a marca desta suave mulher construtora do futuro das gentes.

Madre Feitosa já tem “bisnetos” de seus alunos, e pensar que a longevidade e a dedicação desta mulher quebram o princípio básico da vida burguesa e capitalista. Quem imagina um “executivo” do ensino que não viva no luxo e com excedente de consumo. Aliás, se tornam educadores com este fito. Mas Madre Feitosa não. É uma questão religiosa por certo que é, mas é uma questão essencialmente humana, de caráter e ética que é devido a ela mesma.

Talvez que aos pais e sua família esta personalidade tenha sido estimulada. Estive recentemente nas duas terras inhamunzeiras em que Madre Feitosa nasceu e passou a infância. Ali ainda percebi uma dignidade, uma postura educada como uma era de cavalheiros. Pessoas com pouca educação, mas com um trato humano tão respeitoso que dão engulhos quando os comparamos aos novos ricos em suas Hilux e a grosseria de um som rompendo a calma da vida.

Madre Feitosa, aceite minhas lembranças por este dia. Espero que leia este texto, embora sabendo da volumosa homenagem a que é centro no dia de hoje.

A dor e o menestrel - Emerson Monteiro


Lemos em algum lugar a história de um palhaço que perdeu a esposa e viu-se na condição de comparecer, no mesmo dia, ao picadeiro do circo e fazer rir a platéia que lotava o espetáculo onde tantas outras apresentações ali levara a efeito em condições satisfatórias.

No momento em que todos gargalhavam com desempenho magistral nunca antes presenciado pelo distinto público, dentro dele fervilhava a mais pungente amargura e desciam lavas amargas de dor, disfarçadas com maestria pela máscara que lhe cobria o rosto banhado de lágrimas.

Naquela hora, enquanto alegria sem igual contagiava os espectadores, no peito do homem ardia crise sem precedentes, propósito de quem conduz a vida aonde quase nada pode exprimir da veraz realidade que na alma impera, por força de produzir emoções nos outros humanos universos lá de fora.

A situação descrita, mudando o que merece ser mudado, caberia feita luva numa circunstância que se verificou em Crato, na madrugada de 28 de abril de 2001, quando, no Espaço Navegarte, assistíamos a uma apresentação musical.

No palco, o cantor pernambucano Geraldo Azevedo, voz e violão, que oferecia à numerosa platéia a bela música do seu repertório, boa parte de própria autoria. Aplausos efusivos animavam o clima ameno do lugar, evidenciado nos flashs constantes dos fotógrafos que registravam o acontecimento, entremeados de relâmpagos insistentes que clareavam o céu escuro, à distância, cenário detrás do palco para as bandas da Ponta da Serra.

Isso se manteve ao ritmo das letras e cordas afiadas do instrumento bem praticado daquele artista popular, nas sombras chuvosas da noite caririense.

Duas ou três canções antes do término da cena, porém, numa das falas com que ilustrava os intervalos das canções, o músico comunicou aos presentes que, na véspera daquela data, ocorrera a passagem de sua genitora desta vida para a outra, pondo-se, logo depois, a interpretar uma composição de autoria dela, refletindo na voz o sentimento que se pode imaginar de um filho em situação semelhante.

Ao lembrar os detalhes disso que contamos, vemo-nos também emocionado, a refletir quanto à condição de vida dos artistas e sua proximidade com as multidões, vínculos que se estabelecem no decorrer da existência do trabalho. Enquanto dentro de si lhes sacodem o peito um coração quantas vezes macerado pelas guantes imprevistas do destino, repassam, igualmente, a imagem de quem habita os condomínios da mais pura felicidade.

Missão semelhante, o exemplo do palhaço de que falamos no início. Uns dançam, riem, se divertem. Outros padecem, representam, dissimulam. De íntimo transtornado pelos ardores do sofrimento de perder a mãe querida, o músico prosseguiu com a função até o fim, desfolhando versos e notas, solitário, ausente das convenções deste mundo; isso tudo em nome do amor ao sonho da arte, herói sobranceiro da magna inspiração, porquanto o show haverá sempre, de manter seu curso ininterrupto para o centro dos corações em festa.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Mono Liso


O sorriso enigmático do velho Monolo Toledo destoava, totalmente, da atmosfera ritualística que o envolvia naquele momento tão solene e compenetrado. Um risinho a meio pau que lhe imprimia uma cara meio de sarcasmo, meio de menino pego em traquinagem. Extraíssemos o ambiente pesado, a moldura tenebrosa que amparava a cena, mal saberíamos se o rosto era de satisfação por ter preparado alguma pegadinha a um amigo, se bebera um remédio amargo a contragosto ou se fora flagrado na cama com uma beata. Acentuava o enigma o cenário carregado e o figurino de Monolo. O paletó que detestava, meio amarrotado, meio pegando marreca; as flores ao derredor; o caixão de terceira; o rosto grave dos circunstantes ; o choro de cebola cortada dos dois filhos; o murmurejar mecânico das preces pelos irmãos de culto. Como uma jabuticaba em nuvem de clara de ovo, saltava aquele risinho enigmático de Mono( assim era carinhosamente conhecido entre os amigos), confrontando a austeridade monástica do velório.

Toledo , colocada a vida numa planilha do Excel, teria, certamente um saldo imensamente positivo no que tange à pauta de virtudes. Funcionário graduado do INAMPS, levara a carreira sem máculas. Aposentara-se há uns vinte anos, ainda cinqüentão, sem faltas ao trabalho, sem afastamentos por doenças e sem benefícios. Casara-se ainda no início da profissão com D. Gilbertina e, também nesse quesito, nada havia que o desabonasse. Marido exemplar, nunca se soube de qualquer gambiarra nas instalações familiares do nosso barnabé. Os filhos que vieram foram criados pelo casal com um desvelo invejável. Amparados por tanto cuidado, os meninos seguiram o bom caminho e terminaram formados em advocacia e, bem colocados, cuidaram rapidamente de dar curso às suas vidas , já sem a necessária âncora dos pais. Depois da aposentadoria , Monolo aproximou-se ainda mais de Tina , como familiarmente a chamava: eram duas almas num canudo. Evangélicos de longo curso, tocavam os dias entre cultos, orações e músicas gospels. Com vida tão regrada e filhos independentes, o casal juntara um pé-de-meia razoável , só sangrado , mensalmente, pela obrigatoriedade do dízimo: ofertado alegre e pontualmente a cada dia cinco. A existência de Mono e Gilbertina , de tão exemplar, não mereceria esse relato, não fosse pelo pequeno intervalo de uns três meses que separaram um Toledo perfeito, virtuoso, daquele sorriso enigmático, a meio caminho entre a gozação e a safadeza.

Há exatos três meses, um tufão como que revolveu a vida pacata de Mono e Tina. Os dois já varavam a sétima década, quando, subitamente, uma dor de cabeça atroz acometeu a esposa do nosso barnabé. De início o que parecia uma enxaqueca se foi agravando e em dois dias a levou à cova. O médico, ao dar-lhe a terrível notícia, levou-lhe, também o diagnóstico tardio : “Foi um aneurisma, seu Cassiano !” Seria impossível medir a dor do marido que não perdia apenas uma companheira fiel e amiga, mas de supetão arrastava de roldão a única testemunha ocular da vida de Toledo. Os filhos e os amigos tiveram a absoluta certeza de que o velho não suportaria a perda, cairia em depressão e, em pouco tempo, compraria o ingresso para o mesmo destino da mulher. Temos que admitir que as profecias não estavam de todo erradas.

No primeiro mês , manteve-se Mono praticamente recluso, recusava-se a comer, não dormia mesmo com os efeitos dos sedativos. Os filhos, morando na capital, tiveram que voltar para tocar os rumos da existência. Mono ficou morando na casa enorme que rapidamente se transformou numa imensa e intransponível montanha chamada de solidão. As previsões de todos pareciam estar prestes a se confirmar.

Ao entrar o segundo mês da perda, no entanto, Toledo virou de ponta cabeça. Começou a freqüentar bares, a beber diariamente, a enfurnar-se nos cabarés por semanas. Andava a cada dia com uma garota diferente, geralmente nova e preferencialmente de má reputação. Foi aos poucos dilapidando a poupança ajuntada por tantos e tantos anos: com Viagra, cachaça , farras e mulheres a quem tratava como princesas. Os amigos ficaram escandalizados com a mudança abrupta e a língua do Zé Povinho pinicou rapidamente o oratório de Toledo : imaculado por tantos e tantos anos.

Ontem, em plena atividade libidinosa, Mono foi acometido de um enfarte súbito e, como bom soldado, foi abatido em combate ainda com a espada em riste. E ali estava o sorriso enigmático confrontando a todos: a hipocrisia deslavada dos amigos, a santidade falsa dos irmãos, a revolta econômica dos familiares. Como se perguntasse: E agora reverenciam o longo reinado do virtuoso Toledo ou o curtíssimo e feliz governo do esculhambado Mono ?

A última namorada de Toledo aproximou-se do caixão e, ainda chorosa, cortou radicalmente as críticas veladas dos circunstantes com o único elogio póstumo:

--- Esse Mono, meu povo, era muito era Liso !


J. Flávio Vieira