Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Bacharel em Letras


Certamente, nos  ficou como nesgas da Monarquia esta tendência tão brasileira de distribuir títulos honoríficos às pessoas , sem quaisquer outros atributos agregados além do massageamento de egos e a fermentação de vaidades por vezes adormecidas. Lembro-me ainda de uma infinidade de Coronéis da Guarda Nacional, títulos por vezes comprados e outros tantos distribuídos entre senhores feudais aqui do Nordeste. Empavonavam-se tanto com o galardão nossos avós e bisavós, mesmo que à suposta patente nenhuma honra militar se lhe anexasse. Aqui, qualquer médico, dentista, advogado imediatamente é elevado ao  título de Doutor.  A  Diretoria da mais simples Associação Comunitária elenca um número vultoso de cargos(  presidentes, diretores executivos, Vice-diretores, superintendentes, tesoureiros, secretários, etc) ; uma maneira política de resolver grandes conflitos envolvendo os mais rasteiros degraus da escada do poder. Boa parte das Instituições Brasileiras têm por hábito distribuir , periodicamente,  Prêmios, Medalhas e Troféus ; uma medida barata , cômoda e direta de  --- inflando a auto-estima do agraciado--- corrigir injustiças , fazer política de boa vizinhança, preparar o tráfico de influência futuro. No fundo, bem lá no fundo, qualquer um de nós facilmente é entronado no topo máximo da profissão. É que a vaidade humana é o mais profundo abismo da nossa alma. Não há trena ou balança neste mundo capaz  de medir e pesar a importância que o mais simples mendigo da nossa rua se dá. Há um Príncipe Ribamar e um Senador Epifânio dormentes em cada um de nós.
                                               Há, no entanto, em meio à  sensibilidade envaidecida do nosso povo, aqueles raros que têm o pé no chão e que não pegam corda como relógio de parede. Pois vou contar duas histórias do passado, relembrando ilustres figuras aqui do  Cariri  que terminaram engolidas pela voracidade do tempo. Espero que adociquem um pouco o fim de semana de cada um de vocês.
                                               A primeira envolve uma figura queridíssima em toda região e que fez vida política no Potengi, por muitos e muitos anos. Chamava-se Luiz Gonzaga  Alconforado, mas era conhecido por todos pelo dulcíssimo apelido de LUZIM. É o pai de um renomado Cardiologista da nossa terra : Dr. Orestes Guedes. Sério, digno, probo, orador inspirado, nosso personagem é de uma estirpe de políticos que não mais existe; desses que nunca se molhariam em qualquer Cachoeira. Seu Luzim estudou aqui no Crato, no Colégio Diocesano e , na época, a conclusão da 4ª. Série Ginasial, que hoje representa o término do  Ensino Fundamental , era motivo de uma Festa de Formatura de grandes proporções. Quem finalizava o Curso, na época, recebia inclusive um Título : “Bacharel em Letras”. Após a festa de conclusão, devidamente intitulado, seu Luzim foi passar as férias de final de ano no Potengi e receberam-no com festas, orgulhosos do desempenho do parente. O próprio Seu Luzim contava a história, com a sisudez e o bom humor que lhe acompanharam toda trajetória,: lá chegou vaidoso e serelepe com tantas honrarias. Lá para o meio do festa, seu avô, agricultor eirado e homem  simples do campo, empossado de todo pragmatismo que as dificuldades do dia a dia lhe foram proporcionando, resolveu, o velho . saber mais detalhes das culminâncias que o neto tinha alcançado.
                                               --- Meu filho, você é doutor mesmo de quê ?
                                               Luzim empertigou o peito e impávido respondeu:
                                               --- Sou Bacharel em Letras, vovô !
                                               --- Ah, já sei ! --Fitou-o o velho com olhar tranqüilo --  você agora vai receitar o povo , passar meizinha e encanar braço.
                                               --- Não, vovô ! Não sou médico , não ! Sou Bacharel em Letras !
                                               --- Ah, Luzim, já sei, agora você vai celebrar missa, casar e batizar!
                                               --- Vovô, não sou padre, não ! Sou Bacharel em Letras !
                                               --- Ah, compreendi ! – Saltou o avô. Você agora vai soltar gente da cadeia, lavrar petição  , tomar partido em questão de terra e briga de marido e mulher!
                                               --- Não , vovô, nada disso, não sou advogado, não ! Sou Bacharel em Letras !
                                               O velho, então, impacientou-se e feito o diagnóstico, providenciou o esporro:
                                               --- Bacharel em Letras ! Você não fique aí cagando goma , não, seu moleque ! Você num é porra nenhuma, tá ainda como peito de homem: não tem serventia prá nada! Vá estudar que esse tal de Bacharel em Letras é uma formatura muito da mucufa ! Tome tento, menino !
                                               A outra história envolve um grande professor cratense : José Fernandes Ribeiro Castro. Conterrâneo do nosso Patativa, o mestre veio ensinar no Colégio Diocesano nos anos 40 e se tornou o primeiro professor de Educação Física do Cariri e um dos primeiros do Ceará. Segundo o HD do Cariri,  Huberto Cabral, Fernandes fez-se o primeiro Diretor da Liga Cratense de Desportos. Vaidoso, vestia-se no mais fino linho e perfumava-se como um Dândi e terminou casando numa das mais tradicionais famílias da região: com uma filha do Dr. Antonio Teles.  Um dia, nosso gentleman invadiu a Livraria Católica de propriedade de dois outros amigos professores: Zé do Vale e Vieirinha e parecia radiante. Trazia na mão um telegrama do Governo do Estado, informando-o  da  boa nova :  acabava de ser nomeado  para um cargo de nome pomposo : Inspetor de Ensino. Os colegas prontamente o parabenizaram pela conquista, alguns mais desconfiados julgaram que ali haveria interferência política por parte do sogro que era Deputado Federal. Depois das tapinhas nas costas e da epidemia de congratulações, nosso mestre dirigiu-se diretamente a um barnabé antigo , Quinco Pinheiro, que , em meio à enxurrada  de cumprimentos, terminou-se sabendo já ter assumido a importantíssima função, em anos passados.
                                               --- E aí, Quinco ? Quanto levo, meu amigo ? Qual é o salário que se esconde por trás de  um Inspetor de Ensino ? --- Quis saber Fernandes.
                                               ---- F ernandes, rapaz. Esse cargo que você vai assumir é importantíssimo. Toda solenidade na região você vai ser imediatamente lembrado. Em todo comício você sobe no palanque do Governo. As Escolas vão a todo momento pedir sua interveniência junto ao estado para resolver suas demandas. É ótimo! Só tem um probleminha: É cargo  de alta relevância, mas não remunerado!
                                               José Fernandes, decepcionado, ainda perguntou umas três vezes, para ter certeza:
                                               ---Como? Como? Como? Só firula? Não tem dinheiro nesse negócio , não, é ?
                                               Calmamente  dobrou o telegrama nomeatório e o rasgou, pedacinho por pedacinho. Depois, jogou a pedaceira no cesto do lixo e proclamou:
                                               --- Acabo de ser demitido por justa causa !
                                               Terminei aprendendo. Diante dos elogios dos amigos, dos prêmios auferidos e dos títulos que vão caindo nas nossas mãos vida afora, refreio todo o empavona mento fácil , o orgulho besta e a vaidade contagiosa. Sei que não passo de um simples e antigo Bacharel em Letras.

J. Flávio Vieira

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Favela



                               A grande explosão das Redes Sociais trouxe consigo seus efeitos deletérios como  a chatice desenfreada das frasinhas de auto-ajuda, da religiosidade rasteira, das abobrinhas em larga escala. Mas, com o quadradismo com que os anos me foram achatando, tenho que reconhecer alguns benefícios inequívocos: a reaproximação de colegas e conterrâneos distantes e  , nos grupos, a democratização das fotos antigas do Crato. Recentemente, foi publicada uma que me pareceu interessantíssima. Mostrava o Crato Tênis Clube nos anos 60, com dois políticos locais importantes sentados numa mesa, num jantar festivo. Seguiram-se à foto uma imensidão de comentários afeitos todos às figuras importantíssimas que estavam no primeiro plano, numa homenagem, diga-se, justa e merecida. Pus os olhos na fotografia e, de chofre, divisei, no segundo plano, personagens que até então tinham sido totalmente esquecidos, dois garçons famosíssimos na cidade : Fuinha e Iguatu. Acredito que eles representam um pouco a tônica do meu pobre trabalho de cronista, aqui na região, nestes quinze anos em que venho escrevendo com alguma regularidade. Tenho a vista voltada sempre para o lado oficioso da cidade, até porque já existem historiadores de grande envergadura, bem mais abalizados,  para narrar a face mais visível e oficial desta terra. Interessa-me a face oculta: os poetas, boêmios, místicos,loucos, artistas  e beatos porque pressinto que  se a história oficial dá corpo à Vila de Frei Carlos, são estes outros que lhe imprimem a alma.
                                               E , neste sábado, venho fazer uma grande reverência a uma das figuras mais irreverentes deste Crato. Chamava-se  Manoel Favela Pantaleão, mas era conhecido, por todos os recantos dessa cidade, pelo sobrenome intermediário : Favela. Nasceu em Exu em 20 de Maio de 1924, há exatos 88 anos. Ainda rapazinho veio para o Crato e aqui fez o seu reinado. Alma boêmia, tornou-se músico e tocava seu instrumento nos cabarés da Rua da Saudade e, depois, acompanhou a saudosa rua nas suas mudanças , à medida que foi sendo engolida pelo progresso. Violonista admirado e incensado-- diziam que arpejava o violão até de cabeça para baixo-- junto com Pedro 21, tornou-se um mito. Levou seus acordes ainda para o nomadismo dos circos que por aqui passavam, acompanhando-os Brasil afora. Junto com a música foi tecendo toda uma mitologia de presepadas e chistes que terminaram por impeli-lo à área do folclore. Esposado pela Boemia, como bom Homem da Noite, nunca casou, teve um relacionamento com uma das saudosas Damas de Vermelho e ficaram   dois rebentos que hoje lutam pela vida no Sudeste.
                                               Favela foi, durante toda vida, um boêmio profissional, morava sozinho e, já velho, ainda utilizava todo dinheiro da aposentadoria com as bebidas e as mulheres. Há uns dois anos, foi premiado no Cariri da Sorte : mais de 30.000 Reais lhe caíram nas mãos. As sobrinhas orientaram-no para fazer uma poupança, guardar para os dias futuros. Favela não tinha vindo ao mundo como formiga, mas sim como Cigarra e respondeu-lhes com uma pergunta da mais profunda filosofia hedonista : Guardar ? Para levar para onde, meninas ? Meteu-se novamente em meio às namoradas e o álcool e não sossegou até transformar todo o pretenso tesouro em puro prazer.
                                               São inúmeras as presepadas que se foram colecionando a seu respeito. Vou elencar apenas algumas, na certeza que quase todo cratense que com ele conviveu, sabe de alguma munganga dessa figura célebre.
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                                               Favela gostava muito de freqüentar o Café de Roseno que nos anos 50-60 existia na Rua Bárbara de Alencar, onde hoje é o Ponto Dentário do inesquecível Maurício Almeida. A razão era simples, adorava um Doce de Banana de Botão que lá vendiam. Um dia , lá chegando, fez o pedido da terrina de doce e quando começou a comer, teve dificuldade de mastigar. Tinham usado bananas muito verdes e as rodelas tinham ficado duras demais para serem trituradas pelas próteses dentárias de Favela. Depois de alguns minutos, tentando em vão, rodando as peças de um lado para outro, ele reclamou cheio de razão:
                                               --- Não ! Não tem quem coma isso não! Eu pedi, Roseno, foi  doce de Banana, não foi Pedra de Gamão, não !
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                                               Antonio Favela , um irmão dele, trabalhava na Cantina do Oliveira e adorava ralhar com Manoel.  Um dia, vendo-o passar do outro lado da rua, resolveu mexer com ele e mandou o clássico xingamento :
                                               --- Manoel ! Vai ali na Praça Siqueira Campos prá ver se eu tou lá !
                                               Manoel, sem se alterar , responde na bucha:
                                               --- Vou já, Antonio, mas tenho que passar em casa primeiro !
                                               --- Em casa ?  Por quê ? -- Quis saber o irmão.
                                               --- Por que se tiver um cabestro eu já levo, prá não dá  duas viagens !
                                               Favela voltava de madrugada, violão às costas, após o show no Cabaré, quando foi abordado pelo terrível Major Bento. O militar foi um delegado violento da cidade que, numa determinada época, estabeleceu um Toque de Recolher por aqui. Vendo o músico quebrando o Toque, na rua àquelas horas , o abordou grosseiramente. Favela, então, explicou que era músico , que tocava nas Casas Noturnas da cidade e que  estava, pois, a trabalho à noite, aquilo era seu meio de vida. O Major não quis saber, ríspido falou:
                                               --- Me acompanhe, cabra !
                                               Favela, de pronto, sacou o violão das costas, dedilhou as cordas e respondeu:
                                               --- Pois não, Major! Em que tom ?
                                               Antonio Primo de Brito é uma das memórias mais prodigiosas desta cidade e  foi grande amigo de Favela. A mor parte destas histórias foram  a mim repassadas por ele. Um domingo, Favela chegou cedinho na  casa do ex-prefeito . Pediu R$ 100,00 emprestados. Precisava pagar uma dívida de última hora. Antonio Primo  remexeu os pertences e só encontrou R$ 50,00. Meio a contragosto avisou-o da triste novidade. Favela não se enrolou:
                                               --- Tem problemas ,não, Antonio! Me dê os R$ 50,00! Você é um homem direito e vou confiar em você, depois você me paga os outros R$ 50,00.

                                               De outra feita, Favela acompanhou a seleção do Crato que aí pelos anos 70 ia jogar em Baturité. O motorista do ônibus de carreira era uma outra figura antológica : Moço Lídio. O coletivo vinha apinhado de passageiros e viajava à noite. Favela—que tinha problemas de dormir naquelas horas—resolveu ir lá para frente, ficou sentado conversando com o motorista. Já chegando na cidade de Independência, numa grande descida da serra, o carro deu um estralo e embalou, ladeira abaixo. Tinha quebrado o freio. Moço Lídio foi aprumando e sustentando o veículo como podia, para ver se conseguia chegar à cidade de Independência, lá embaixo, o que seria a única salvação possível. Favela manteve-se impassível. Nisto, uma senhora passageira percebeu o estralo estranho , a velocidade e o risco que estavam passando, correu lá prá frente aflita e gritou:
                                               --- Valei-me meu Deus ! Motorista,  o que isso significa ? Diga !
                                               Favela, sentado, tranqüilo, resumiu para ela o problema:
                                               --- Ora, minha Senhora : Independência ou Morte !
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                                               No dia doze de janeiro último,  o violão silenciou. A velha Rua que um dia chamou-se Saudade perdeu uma de suas vozes mais poderosas. E a história sentimental da vila que um dia foi tão fértil e verdejante , hoje , mais que nunca , se transformou em Favela.


J. Flávio Vieira