Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

quinta-feira, 31 de março de 2011

A calçada dos Piancós


--- De que adianta ainda continuar vivendo, meus filhos? Nem mais no Crato, eu moro !

Quando o velho Felinto pronunciou aquela frase, os filhos quase que piraram. Já vinham percebendo que, depois dos oitenta, o pai decaíra, andava mais capiongo e ensimesmado. Logo ele que sempre se mostrara tão expansivo e, até então, enfrentara os ataques inexoráveis do tempo com galhardia e bom humor! Acreditaram que devia se tratar de alguma depressão – um dos demônios da velhice – já que, recentemente, Felinto havia perdido a esposa e um dos seus amigos mais diletos: Sampson. Ficara como um Mateu sem Catirina , sem Mestre e sem Jaraguá. Como encontraria forças para brincar o Reisado da vida? Aquela frase, no entanto, feriu os tímpanos dos familiares : a depressão talvez fosse apenas um dos acompanhantes do séquito terrível da demência. Felinto , desorientado, dava mostras que nem mais percebia que estava na sua cidade querida, companheira dileta de toda uma vida! Com o passar dos dias, no entanto, os filhos se tranqüilizaram um pouco. Embora Felinto permanecesse sorumbático e pensativo, não mais demonstrou sinais de desorientação. Claro que poderia ter se tratado de um curto circuito , um daqueles que frequentemente antecedem a explosão final das turbinas da lucidez. Os filhos, então, se aproximaram mais do velho e insistiram , dia após dia, em testes de memória. O pai foi aprovado em todos com distinção e louvor, como se dizia na juventude dele. Um dia, por fim, conseguiram , com alguma relutância, uma declaração de Felinto que terminou por demonstrá-lo mais vívido e sábio como jamais pensariam. Terá sido, quem sabe, o clima proporcionado por aquela noite de lua cheia, confidente e cúmplice das peripécias do nosso Felinto desde os tempos mais remotos. O certo é que , como no teatro, com iluminação perfeita, nosso candidato a gagá desembuchou seu monólogo. Tivera, até ali, uma vida longa e feliz. Uma pitadinha de sucesso, algumas gotas de fracasso, muitas xícaras de desejos, colheradas de prazeres, copos de dissabores... Mas foi com esses ingredientes que conseguiu montar a palatável receita da sua existência. No outono e inverno dos seus anos, no entanto, começou a perceber que o bolo começara a azedar e, quiabando dia após dia, terminou nos últimos meses a se tornar intragável. Olhando para trás, pelo retrovisor, percebeu claramente que a morte , como um curare nos vai paralisando paulatinamente: o fim instala-se a crédito. E foram muitas e muitas mortes no último quartel : o tesão, a mobilidade, a saúde, a esperança, o vigor físico, a esposa e o amigo de todos os momentos: Sampson. Com a velhice ele se transformara numa coisa obsoleta. Já não falava a língua dos jovens e, pior, os últimos remanescentes do seu idioma haviam todos respondido à chamada inexorável da velha da foiçona. Como uma vitrola imprestável servia apenas à curiosidade pública. Via-se como uma peça de museu, exposta periodicamente à visitação . Tantas mortes seguidas e continuadas o tinham abatido, mas nada fora tão forte como a percepção que tivera há uma semana. Lembrou do Crato da sua juventude, procurou-o vila afora e simplesmente não mais o encontrou. Onde estava encantada a cidade encantada que conhecera algumas décadas atrás? As casas coladinhas uma na outra, aconchegadamente, sem muros, quem imaginaria se transformariam nos presídios de segurança máxima da atualidade? Os vizinhos eram quase que familiares que moravam num outro quarto da casa. Estavam sempre próximos e havia uma contínua troca de pequenos favores de lado a lado. A televisão e o rádio de algum morador mais abastado eram objetos de uso comunitário. Claro que as fofocas pululavam na vilazinha de muro baixo, mas nada se compara à frieza e à indiferença dos dias atuais. As calçadas eram uma extensão da casa, uma espécie de Centro de Convenções da família, ainda não tinham sido açambarcadas pelas ruas, pelos postes, pelas placas de propaganda. As ruas, então muitas ainda sem calçamento, faziam-se o playground das crianças, o parque de diversão da molecada: o palco do pião, da bila, da bandeira, do chicote queimado, do pega, da bola. Não haviam ainda sido invadidas pelo carro e pela moto. Os cinemas , cujo escurinho fora cúmplice de namoricos e apalpadelas, haviam fechado as portas. Os clubes sociais sobreviviam às custas de bandas de forró com sua apologia única e repetitiva à cachaça e à raparigagem. Naquele dia chegara à conclusão aterrorizante e definitiva : já não moro mais no Crato! Suportou até a ação do apagador do tempo sobre sua história, mas pareceu-lhe insuportável quando a isso se associou o extermínio puro e simples da geografia. Tanto que avisou aos filhos: não sei se vale a pena esperar a cobrança da última prestação, estou pensando, seriamente, em me adiantar e saldar antecipadamente a minha dívida para com a morte. Os filhos de Felinto entenderam as razões do pai e decidiram respeitar o curso de colisão que tomara, afinal sempre fora um ótimo e destemido timoneiro. Ontem, no entanto, no jantar, Felinto pareceu, estranhamente, mais alegre e palrador. Disse aos parentes que desistira da derradeira empreitada. Recobrara as forças. Para uma récua de filhos incrédulos ele explicou a súbita guinada que dera no Titanic da sua existência, já indo em direção do iceberg . Passara na Caixa D´água nestes dias e tivera uma visão consoladora. Estava lá , triunfante, a Calçada dos Piancós. Todos sentados, à noite, com suas cadeiras do lado de fora, contando as últimas e mais picantes novidades da cidade, juntos com muitos amigos. De um lado a TV ,ligada à tomada por uma gambiarra, transmitia um fabuloso Fla-Flu, em pleno calçamento. Corria uma cervejinha solta e , a um canto, um dos meninos assava uma carninha numa churrasqueirinha de roda de fusca. Felinto, imediatamente, banhou-se na alegria de outrora.Parecia Noé ao avistar a pomba com o galho de mato no bico. Restava ainda uma esperança. Nem tudo estava perdido.

--É preciso avisar ao IBAMA, ainda existem os últimos exemplares da espécie mais ameaçada de extinção nos dias de hoje: Gente, gente de carne e osso !


J. Flávio Vieira

segunda-feira, 28 de março de 2011

PROGRAMA CARIRI ENCANTADO SONORIDADES

CONEXÕES MUSICAIS: BELCHIOR, APENAS UM TROVADOR LATINO-AMERICANO

Belchior não é apenas um cantor e compositor brasileiro; é um grande poeta e autor de manifestos musicais representativos de toda uma época e de várias gerações de jovens. Nasceu em Sobral, Ceará, em 26 de outubro de 1946. Depois dos baianos tropicalistas, foi um dos primeiros cantores de MPB do nordeste brasileiro a fazer sucesso nacional, em meados da década de 1970.

Durante sua infância no Ceará foi cantador de feira e poeta repentista. Estudou música coral e piano. Foi programador de rádio em Sobral, e em Fortaleza começou a dedicar-se à música, após abandonar o curso de medicina. Ligou-se a um grupo de jovens compositores e músicos, como Fagner, Ednardo, Rodger Rogério, Teti, Cirino, entre outros, conhecidos como o Pessoal do Ceará.

Ainda criança conheceu o Cariri, trazido pelo pai, numa inesquecível viagem de trem. Desde então, sempre tem retornado à região; ultimamente para realizar shows, em apresentações que reúnem grande público, a exemplo das que aconteceram na Expocrato, em 1997, e na Festa de Santo Antonio, em Barbalha, em 2005.

Sua obra é, portanto, admirada pelos caririenses, tendo influenciado muito compositores locais, tanto pela sua elaborada música e intrigantes arranjos e interpretação, como pela sua poesia ao mesmo tempo contundente e lírica.

O programa Cariri Encantado Sonoridades, em conexões musicais, apresenta Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou apenas Belchior, um trovador latino-americano.

Programação Musical
1. Apenas Um Rapaz Latino Americano
2. Todo Sujo de Batom
3. Na Hora do Almoço – Participação: Ednardo
4. Sujeito de Sorte
5. Alucinação
6. Não Leve Flores
7. Caso Comum De Trânsito
8. Divina Comédia Humana
9. Terral - Participações: Ednardo e Amelinha
10. Tudo Outra Vez
11. Comentário a Respeito de John
12. A Palo Seco – Participação: Los Hermanos

Obs.: Todas as composições são de autoria de Belchior, exceto Terral (Ednardo) e Comentário a Respeito de John (Belchior e José Luiz Penna)

Ficha Técnica
O programa Cariri Encantado Sonoridades é produzido pelas Officinas de Cultura e Artes & Produtos Derivados – OCA, e transmitido todas as quartas-feiras, das 14 às 15 horas pelas ondas sonoras da Rádio Educadora do Cariri AM 1020.

Pesquisa, redação e apresentação de Carlos Rafael Dias. Operação de áudio de Iderval Silva.

domingo, 27 de março de 2011

Às vezes, tudo - Emerson Monteiro


Viajar por dentro das veias e colher algumas lembranças dos lugares e sentimentos. Olhar pelas janelas dos hotéis da vida; silenciar nos voos longos da alma aos tetos do firmamento; deslizar com as nuvens; saracotear acrobacias nos riscos dos pássaros experimentando as variações da brisa. Apalpar as vísceras; sondar quanto tempo mais o muro resistirá à ação dos elementos. Esfregar os olhos, nos desejos de ver a estrutura dos monumentos esverdeados nos parques, nos momentos frios das manhãs nubladas. Esses tique-taques de pedras rolando no inverno das encostas mexem com os nervos tensos da gente, atiçam as paixões antigas, desesperadas saudades, que foram embora irresponsáveis, nos sulcos dos velhos discos de músicas amareladas. Tantos amigos, lugares, vibrações, esperanças e sonhos sumiram simplesmente. As horas molhadas da véspera insistem nas palavras que construíram as inúteis ilusões. Vontade poderosa de convencer a mim próprio de escutar o interior, no seio das criaturas e elevações de pensamentos.
Tais descrições matemáticas de abstratas sensações servem na medida, quais moedas de troca entre as partes do corpo, no solo do organismo. A visão solitária do projeto pessoal quer falar entre os dedos, sem, contudo, ganhar dimensões que satisfaçam a tranquilidade necessária da alegria. E prossegue o esforço de aclimatar o temporal do coração, esse ser ansioso que dói feito urtiga na pele interna da gente. Refletir as memórias, eliminar sofrimento a qualquer custo, anestesiar os impactos destas ciladas esplendorosas de viver e permanecer intacto, querer fugir de conter a dor no território.
Ondas sucessivas de pulsações indicam presenças de seres existentes no caos da memória. Animais impacientes querem dominar os cascos impetuosos que desfilam durante a longa procissão dos aflitos e catam companhia em viveiros abandonados. Um a um, alimentam o vazio, a preencher de novos anseios. Descem, sobem as ladeiras da filosofia à procura de justificar movimentações de tapetes mágicos que deslizam sempre à frente da orientação inevitável. Vêm dúvidas, bloqueios, esquecimentos, insistências, no entanto prosseguir do jeito que puderem as pernas ou a imaginação.
Quisesse, haveria chances de continuar. A todo custo evoluir. As marcas ocultas das solidões agressivas retorcem na boca do estômago de pensar em reunir forças para estabelecer o padrão da viagem. Juntar peças de bagagens e notar que daqui nada presta, apenas o direito de existir, que fala na altura certa dos expectadores do drama que nós somos, bólides acesos de contradições e aventuras. Chegar aqui vindos de longe. Frases. Períodos. Blocos de íntimas amarguras, as quais ninguém conhece. Tão único instante de buscas frutíferas e doces, o enlevo no processo dos significados a quem lê, vê e ouve dizer que tudo mostra possibilidades, acalma, conquanto o século das luzes habita o bairro do ser em si, na vila feliz dos amores adormecidos na alma.

sábado, 26 de março de 2011

Um novo livro de Flávio Morais - Emerson Monteiro

Quem estudar a literatura caririense encontrará um filão de autores dos mais variados matizes, bons e férteis, às vezes solitários e até desconhecidos, que, no entanto, circunscrevem profundas e inestimáveis criações da tradição culta e popular de nossa gente. São memorialistas, historiógrafos, contistas, novelistas, romancistas, poetas, jornalistas, cientistas sociais, juristas, a formar rico material de perpetuação da cultura deste pedaço surpreendente de chão, que agasalha civilização altiva e heróica em natureza aconchegante, a se expandir para o mundo inteiro. Acervo dos melhores, reúne herança da história social das gerações e supera os limites da perecividade.
Dentre esses nomes formadores das nossas letras alguns ganham destaque pelo conjunto da obra e pela qualidade do que publicam, tamanho do que contém na utilidade futura e no intento das suas publicações. E no meio dos tais profícuos e organizados homens da escrita caririense se acha José Flávio Bezerra Morais, ora a lançar mais uma de suas obras, para gáudio de todos os apreciadores beletristas.
Caririense provindo de Milagres, Ceará, nascido a 23 de julho de 1970, filho de Francisco Ivo Morais e Maria Socorro Bezerra Morais, Flávio marca a literatura regional com trabalhos de fina valia e denso fôlego. Jovem, porém autor de um vasto acervo, cujo conteúdo revela quatro nítidas vertentes de abordagens de gêneros e estilos.
Primeiro, aos inícios de sua produção literária, enfeixou, em dois saborosos livros, os contos que escutou na oralidade sertaneja do lugar onde viveu a infância, nos rincões do Cariri. “Histórias que ouvi contar”, de 1993, e “Histórias de exemplo e assombração”, de 1997. Dois belos trabalhos escritos com o zelo acadêmico de aluno do Curso de Letras da Universidade Regional do Cariri, eles foram editados com a modéstia de nossas gráficas da ocasião, e levados às bancas para apreciação de muitos, marcos imprescindíveis do gênero fantástico da nossa literatura, agora dignos de figurar em novas edições, uma vez esgotados nas livrarias e bancas.
A seguir, sob o mesmo prisma das histórias anteriores, elaborou “Sete contos de arrepiar”, um clássico deste gênero no Brasil, publicado através de importante casa editora, a Rocco, isto em 2006, já revelando outro dos quatro víeis considerados na sua obra, o de autor infanto-juvenil que ora se consolida com esta obra lançada. O livro ganhou maiores âmbitos, rendendo ao autor participar da 44th Bologna Children’s Book Fair 2007 (44.ª Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil, em Bolonha, Itália, no ano de 2007), consagração digna dos bons escritores mundiais.
Ao sabor das considerações de quantos aspectos dispõe o roteiro autoral de Flávio Morais, em 1989, editou “Milagres do Cariri”, uma abordagem telúrica dirigida à sua terra natal sob pontos de vista físicos, geopolíticos, antropológicos, etc.
Daí, seguiu um outro título, “Nas veredas do fantástico”, em 2002.
Graduado em Direito pela Universidade Regional do Cariri, Flávio Morais encetou os esforços da sua intelectualidade também às hostes jurídicas, galgando com sucesso o posto de juiz do Tribunal cearense, funções que abraça com os vigores da responsabilidade. No espaço das letras voltadas ao ministério do Direito, pois também exerce cátedra na Universidade do Cariri, em 2003, publicou “Dívidas: como preveni-las ou livrar-se delas”, sequenciado, em 2004, pelo “Compêndio de Prática de Processo Penal”, e, em 2008, pelo romance de cunho jurídico “A sombra do laço”, pesquisa histórica de um episódio da existência do Padre Ibiapina, figura emblemática da Igreja Católica no Nordeste brasileiro, e que também cumpriu o papel da advocacia aos tempos do século XIX.
Destarte, no ímpeto da arte literária, nosso autor revela acuidades e aceita com afeto o fazer da inspiração, legando-nos, agora, “Daniel Alecrim e o talismã de ébano”, produção estabelecida sobre o primor das anteriores, realimentando seu público jovem dos insumos do estilo correto, da imaginação penetrante e do talento raro, demonstrações do quanto revelam seus textos das duas primeiras edições ao crivo do inesperado, do fantástico, sem, no entanto, fugir à seriedade austera decantada nas histórias da infância, nem abrir concessões ao vulgar da pura fantasia comercial.
O território que Flávio Morais permeia no seu universo criativo alimenta de satisfação os leitores, porquanto os encaminha dentro de valores sóbrios e justos, ao fragor dos bons e pródigos narradores. Esta revelação, que consolida cada vez um pouco mais nos livros posteriores, enriquece nossas letras e agrega qualidade ao gênero infanto-juvenil da literatura brasileira, portanto.
Ao me convidar a esta pequena introdução talvez Flávio Morais nem imaginasse acertaria em cheio em um dos seus admiradores desde seus primeiros trabalhos, quando, antes mesmo de conhecer a pessoa do escritor, os localizara numa das bancas de jornais de Crato, trazendo-me de volta aos universos imaginários da minha infância interiorana e suas histórias de causar espanto, contadas nas varandas de noites escuras do Sertão. Depois, aficionado, acompanho de perto os passos generosos deste expoente das letras caririenses, amigo e pessoa humana digna do nosso apreço.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Cariri Encantado Protagonistas

20 anos da Academia dos Cordelistas do Crato

Crédito: Overmundo

Nesta sexta, o programa Cariri Encantado Protagonistas entrevistará a cordelista Josenir Lacerda e outros membros da Academia dos Cordelistas do Crato no âmbito das comemorações dos 20 anos daquela entidade.

Josenir Lacerda é natural de Crato, Ceará. Admiradora e entusiasta da poesia do folclore e da cultura regional, também trabalha com artesanato. Possui vários trabalhos publicados na região do Cariri, em Fortaleza e em outras regiões do país. Participou de várias antologias poéticas. Tem vários cordéis publicados, destacando-se "O linguajar cearense", ilustrado por Audifax Rios . Escreve em vários estilos: poesia, conto,crônica e cordel. É funcionária aposentada e há vinte anos possui a Cordel e Arte, uma lojinha que como o nome sugere pode-se encontrar além do cordel, diversos produtos típicos do Nordeste: bonecas de pano, cabaças, xilogravuras, figuras esculpidas em madeira, bordados e tantos outros badulaques. A lojinha é uma verdadeira bodega cultural, fartamente incrementada com os conhecimentos preciosos da proprietária sobre tudo quanto é cultura popular.

Josenir pertence à Academia de Cordelistas do Crato, fundada em 1991, por Elói Teles, também cordelista e radialista.

Fonte: silnunesprof.blogspot.com e www.overmundo.com.br

Ficha Técnica
O programa Cariri Encantado Portagonista é produzido pelas Officinas de Cultura e Artes & Produtos Derivados – OCA, e transmitido todas as sextas-feiras, das 14 às 15 horas pela Rádio Educadora do Cariri AM 1020 e pela internet (www.radioeducadoradocariri.com).
Apresentação de Luiz Carlos Salatiel.
Operação de áudio de Iderval Silva.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Maria Fumaça


O velhinho entrou no consultório meio desconfiado, meio cabreiro. Como boi no matadouro, esperando o xunxo do magarefe. Dois filhos o puxaram até ali e duas filhas o empurraram. Todos carregamos, no íntimo, a certeza da imortalidade física: o velhinho, sabe-se lá porque, pressentia que sua moléstia não era coisa simples, dessas de se resolver com Capivarol e Extrato Hepático. Sentou-se meio constrangido, mas ,rápido, recobrou o equilíbrio e desatarraxou um vendaval de sintomas. Estava naquela idade em que os inimigos começam a armar o cerco e passam a disparar sem piedade sua metralhadora de achaques, de dores e infortúnios. O médico o examinou com cuidado e teve a certeza de que o velhinho não exagerara na premonição. Algum esmeril feroz carcomia as forças daquele que um dia fora um touro indomável, trabalhador incansável no campo, um artista da enxada e do arado. A madeira de lei dera cupim. O esculápio solicitou alguns exames que confirmassem sua certeza e prescreveu alguma medicação que, certamente, não diminuiria a doença, mas aumentaria a esperança do velhinho. Receita na mão, antes de sair, o paciente fez um pedido inusitado:
--- Doutor, o senhor gosta de escrever , não é ?
O médico , que produzia esporadicamente alguns textos para a imprensa local, confirmou:
--- É , vez por outra eu escrevo umas potocas sim, seu Pedro!
--- Pois é, vou pedir um favor : escreva sobre a Maria Fumaça !
O profissional, polidamente, prometeu fazê-lo, mesmo sabendo que o compromisso fazia-se apenas um ato de educação, uma promessa dessas que os políticos firmam no palanque: afirmam como sem falta e faltam como sem dúvida. O médico seguiu sua via crucis: o atendimento interminável de pacientes, com aquela sensação de quem tentava esgotar um olho d´água. Tardizinha, voltando para casa estafado, lembrou , estranhamente, da reivindicação do ancião e pôs-se a imaginar as razões possíveis e ocultas daquilo que soara quase como o último desejo de um condenado. Por quê a Maria Fumaça ?
O trem terá sido o primeiro transporte de massa de acesso a todas as classes sociais. Como uma serpente enorme varava os sertões, levando na barriga pessoas, sonhos, ilusões. Trazia ainda mantimentos, as notícias , as cartas e as últimas novidades dos mais distantes rincões. Imaginem o encantamento que causava no caboclo que observava seu porte gigantesco e seu “café-com-pão” interminável. E a estridência do apito agudo, nos ermos campos de outrora? A fumaça que esvoaçava da chaminé, como se fora o dragão de São Jorge? E mais: a possibilidade de transportar cada passageiro em busca do sonho mais inalcançável? A Maria Fumaça deu asas ao matuto e tornou viável o destino cosmopolita do cearense. Desde que seu apito ecoou pela primeira vez na pradaria , o caboclo descobriu definitivamente que esse mundão não tem cancela. Há a possibilidade de ser infeliz em muitos lugares diferentes. Se é tão difícil mudar a história da humanidade, o trem nos deu a condição de alterar ao menos a geografia.
Na iminência de empreender uma longa viagem, compreendeu, por fim, o doutor, a visão da Maria Fumaça serpenteando os campos sertanejos trazia consigo um alento, uma tranqüilidade quase que etérea. O trem que partiu, um dia retornará, inevitavelmente, trazendo no seu matulão novas esperanças e bons augúrios. E lépido e fogoso um rapazinho saltará na mesma plataforma em que um dia o velhinho alquebrado embarcou, apenas com passagem de ida, com destino ignorado e sem imaginar que todas as estradas terminam sempre na mesma estação.


J. Flávio Vieira

quarta-feira, 23 de março de 2011

Uma libertação diária - Emerson Monteiro


Ao trilhar a senda os passos individuais, neste salão dos tesouros submersos de oportunidades intransferíveis, ainda que pretendamos fugir da responsabilidade para viver, algo cresce na raiz da gente, à medida que caminhamos. Isto são as experiências deste cinema da vida. As amostras constantes de opções e demonstrações da realização do eterno movimento nas pessoas que formam o rebanho. Multidão criteriosa de pensamentos e sentimentos fala aos nossos ouvidos segredos reveladores da missão particular desses agentes do sucesso que nós somos.
Ninguém escapa de trilhar os próprios passos. Andar em frente, cena que muda em alternativas das passadas, define bem o plano do percurso, numa estrada infinita sobre o chão comum das gerações. Esse sentido dominante envolve os aspectos da percepção humana e cala fundo na máquina de testemunhar o itinerário, propondo interpretações minhas, suas, nossas.
Durante todo tempo da jornada, os artistas espectadores do universo viajam pela vida e apresentam a si o cardápio das ações a praticar. Bem no ângulo das decisões, quando escolhemos qual caminho seguir, todos, réus e juízes das atividades, trabalham com suas próprias iniciativas. Telas e pintores fixam o gosto da criação, nos gestos que praticam, sendo, porquanto, criaturas e criadores no mesmo instante, vagando neste mar de sobrevivências diante das aparências físicas e do espaçoso desconhecido invisível.
Ditas quais palavras, grosso modo estabelecemos as culpas e elaboramos os perdões pelas faltas cometidas, aperfeiçoando o decorrer das eras no padrão definitivo que, lá um belo dia, iremos oferecer de nós às portas do Reino, dentro do processo original de tudo isto, a retornar à casa do Pai, Criador desses assuntos, causa primeira da manifestação chamada Existência, que herdamos nos lugares, papéis e produções recebidas no começo do percurso.
Por isso, querer evoluir pede efetivas providências e pulso dos que aspiram libertação do enigma continuado das histórias. A religiosidade individual, mãe de religiões dos grupos humanos em qualquer época, indica, assim, costumes bons, espíritos elevados, aspirações superiores, além da condição pura e simples de dominar as vaidades para desfazer a ilusão, no impulso libertador. Níveis amplos, conotações siderais, práticas sublimes, remédios que curam os atrasos do passado, a troco de respostas maiores e mais prudentes.
Contar essas considerações só fixadas nas plataformas da terra solicita, pois, sentimentos altivos de lutar e uma vontade forte para subir aos elevados da esperança e da fé. Espécie de técnicos da alma, os mestres falam outras linguagens; apontam renunciações e desapegos; contudo, nas ocasiões de resolver os dramas em novas tradições de si mesmo, nascem criaturas vindas do ser particular, das árvores pessoais que frutificarão durante a vida, nos dias de matéria prima e presenças permanentes em nossas mãos mágicas.

terça-feira, 22 de março de 2011

Outras palavras positivas - Emerson Monteiro


Existe uma energia em atividade que circula de pessoa a pessoa, dentro da força universal de falar. O processo de montar os significados da fala estabelece o contato dos inúmeros pensamentos, e cresce os sentimentos nascidos daquilo que as palavras em si transportam. Algo semelhante ao cultivo do solo, a plantação das espécies vegetais. Primeiro, selecionar as sementes; depois, escolher os melhores chãos, a fim de permitir futuros roçados.
Palavras ditas são pássaros soltos no céu das consciências dos que ouvem. Daí o cuidado obrigatório com que se deve trabalhar a fala durante todo tempo. Respirar, cadenciar o ritmo e distender claramente esse instinto de dizer, sob as leis da boa vizinhança. Diplomacia surgiu disso, da habilidade desenvolvida no trato das palavras entre criaturas humanas.
Por mais difícil que seja o conteúdo a transmitir, por vezes dotado de cargas emocionais carregadas de afetos e marcas, o bom comunicador descobrirá o jeito indicado de aplicar as palavras e nelas formular peças exatas, até chegar ao objetivo certo.
Passar alegria, por exemplo, requer, antes de tudo, o estado de espírito que apresente ânimo de quem queira formular os conceitos alegres e levá-los àqueles que os recebam.
Fortes impulsos do coração, sentimentos bons que vivem soltos nos territórios dos pensamentos, falam do que é bom, elaboram expressões de boa vontade, andam passo a passo junto dos aspectos felizes que envolvem a existência, em ocasiões próprias de nutrir a satisfação de ouvir, nos grupos sociais.
Sabedoras do potencial de vitalidade nos relacionamentos, as pessoas avaliam o quanto o mundo espera da boa utilização das palavras. Comentar saúde, trabalho, oportunidades, religiosidade, fé, solidariedade entre os povos, esperança dos melhores dias, estudo, crescimento das individualidades, sucesso de empreendimentos progressistas, novas chances nos dias seguintes, mensagens dos grandes mestres, histórias felizes, realizações da civilização, descobertas da ciência, andamento das instituições, honestidade, justiça, valor da dignidade, personalidades e lideranças de paz, equilíbrio da natureza, e um tanto de vivências do coração que chegam aos pensamentos e criam frases, eis as portas abertas dos bons sentimentos que geram boas palavras.
Admitir este poder disponível aos seres humanos, e utilizá-lo nas reais e constantes proporções, sem sombra de dúvidas fornecerá uma dimensão enriquecedora em termos de amizade e satisfação pessoal aos que disto façam uso. Algo tão simples, espontâneo e acessível, instrumento valioso nas mãos de todos, representa, pois, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós, das páginas bíblicas em relação à vinda de Jesus.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Discurso breve - Emerson Monteiro

E se abandonar às palavras, assim como, irresponsavelmente, os porcos vocacionados se jogariam a fétidas lamas dos chiqueiros dos invernos extremos; e os burros a pedras esfumaçadas e quentes das bagaceiras, logo depois que largaram, ainda suados e trôpegos, cangalhas fedorentas nas quais nutriram a glória durante todo o dia inteiro, no caminho exaustivo do corte ao engenho, transportando as canas de moagem eterna. Uma disposição total e absoluta das puras evidências e circunstâncias. Um parto sem a dor inconveniente das razões, de jogar lá fora todos os fardos e entraves das limitações humanas que totalizaram as misérias da alma e encheram de rabugice o porão das pretensões do que comportaria o viveiro das fantasias.
Nesse passo constante de frases, vêm as primeiras respostas do vento, o aviso de retorno à simplicidade original perdida na civilização do universo aparente das diárias ilusões. Chamar a si o mérito dessa culpa que corrói as entranhas da multidão desenfreada, na busca da sobrevivência a qualquer preço. Uma fome geral de poder no complexo dos impérios mundiais, que só constrange quase a caravana inteira, troco do ouro encardido disputado da própria terra comum, sem dó nem piedade, na febre do desespero.
Chegar pedindo o que sabe ninguém tem a oferecer; chegar impondo caridade a quem nunca dela conheceu das mãos poderosas dos gigantes do Norte. Introduzir agulhas finas em veias secas ocidentais, espoliadas, numa salva de prata revestida com pedras dos melhores diamantes africanos sujos de sangue.
Bom, estas palavras refletem apenas inscrições nas paredes artificiais da fama. Uns trapos de notícias a percorrer imensamente os ares internacionais, no sabor das mudanças impostas aos governos das propagandas hostis. Isso de ouvir nos céus os telegramas das agências, à procura de sentido em vastas academias de homens ricos a dominar o Planeta envilecido, marca, com forte palidez, a ordem econômica constituída de pessoas a enganarem a si mesmas, quando os reis nus da história desfilam nos carros abertos pelas avenidas principais.
Querer o que, depois de guerras monumentais, se transmitiu em formato de lealdade, bondade, à hora do repasto das feras, na praça principal, aos olhos frios dos chefes de tribos e inertes personagens, comandados a custo das assembléias de um só. Já tivemos vários sonhos de união, quando o lobo pastará vizinho do cordeiro, nas luzes de amizade permanente. Quando cores simbolizarão valores e sentimentos bons de criaturas reunidas para celebrar fertilidade e o direito harmonioso das espécies, sem elites superiores.
O discurso autêntico dos corações enamorados em cerimônia de núpcias, que convida o rebanho ao cio das almas que alimentam a multiplicação dos pães sem privilégio, longes das caretas das barrigas vazias e dos braços crônicos do desânimo. A palavra das verdades eternas de justiça, amor e paz, espalhadas neste vasto laboratório das felicidades estabelecidas, na visão democrática das massas, território ideal de plantar a boa semente viva da certeza.

PROGRAMA CARIRI ENCANTADO – SONORIDADES

Conexões Musicais: Jefferson Gonçalves, Encruzilhada de Sons

O carioca Jefferson Gonçalves começou a carreira no início da década de 1990, seguindo por um caminho comum a muitos gaitistas: o blues. Fundou a banda Baseado em Blues e o trio acústico Blues Etc., gravou com artistas de diferentes gêneros e se consolidou como um dos mais completos nomes da gaita no País.

No entanto, o blues não foi fator limitante para Jefferson. O gaitista identificou traços muito semelhantes entre a música negra norte-americana e a do Nordeste brasileiro, baseada nos ritmos de forró, como o baião, o xaxado e o xote. E essa percepção alargou-lhe os horizontes.

Dedicou-se, então, a estudar os representantes mais significativos da arte nordestina. Descobriu o maracatu e o samba rural e, como consequência natural, incorporou esses elementos ao seu primeiro CD solo, "Gréia", lançado em 2004. A mistura foi bem recebida por críticos e público. "Gréia" põe no mesmo balaio a criatividade de Bob Dylan e de Luiz Gonzaga, o balanço de Jackson do Pandeiro e de Ray Charles. Tudo é música, afinal – e de extrema qualidade.

Em 2003, Jefferson Gonçalves ministrou o primeiro curso de gaita em Nova Olinda, cidade do Cariri cearense. Nessa iniciativa, realizada em parceria com a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, Jefferson utilizou as bases conceituais de sua mesclagem musical. Deixou gravada, inclusive, como ferramenta de estudo, uma vídeo-aula produzida pelos próprios alunos da instituição. Os resultados foram extremamente positivos. De volta a Nova Olinda em 2005, pôde constatar avanços da garotada da Fundação Casa Grande, considerando inclusive as ricas possibilidades oferecidas pela gaita – um instrumento versátil, aplicável a diferentes ritmos, de inquestionável portabilidade e, sobretudo, de custo baixo. Não só isso: criou na cidade uma banda de apoio, com a qual tem se apresentado em shows na Região do Cariri.

Pela sua representatividade como um dos expoentes do blues tocado no Brasil, e pela sua relação com a região do Cariri, o programa Cariri Encantado presta sua homenagem e manifesta sua gratidão a este músico que une talento musical e exercício de cidadania, neste especial intitulado “Jefferson Gonçalves: Encruzilhada de Sons”.

Fonte: Site oficial de Jefferson Gonçalves (www.jeffersongoncalves.com)

Programação musical
1. Rolling Along (Jefferson Gonçalves, Kleber Dias e Richard Thomas Preusser Jr.)
2. All Along the Watchtower (Bob Dylan – Arranjo: Jefferson Gonçalves)
3. Don't Think Twice It's All Right (Bob Dylan – Arranjo: Jefferson Gonçalves)
4. Crossroads (Robert Johnson - Arranjo: Jefferson Gonçalves)
5. Don't Look Back (Jefferson Gonçalves, Kleber Dias, Fábio Mesquita e Richard Warner)
6. Baião pra Jú (Jefferson Gonçalves)
7. Just Your Fool (Walters Jacobs)
8. 500 Miles (Peter Madcat)
9. Nosso Groove (Jefferson Gonçalves, Kleber Dias, Fábio Mesquita, Sérgio Velasco, Técio Andrade e Marcos BZ)
10. Essa é pro Espedito (Jefferson Gonçalves)
11. Estação Werneck (Jefferson Gonçalves e Giovanni Papaléo)

Ficha Técnica
O programa Cariri Encantado Sonoridades é produzido pelas Officinas de Cultura e Artes & Produtos Derivados – OCA, e transmitido todas as quartas-feiras, das 14 às 15 horas pela Rádio Educadora do Cariri AM 1020 e pela Internet – www.radioeducadoradocariri.com.
Pesquisa, redação e apresentação: Carlos Rafael Dias.
Operação de áudio: Iderval Silva .

sexta-feira, 18 de março de 2011

Japão


A imagem que saltava da TV parecia familiar. Dir-se-iam vários meninos brincando com seus carrinhos e casinhas na beira da praia e, de repente, uma onda mais forte , engolia todos os brinquedos e os levava maré abaixo. As imagens, mostraram-se depois, eram perfeitamente reais, não fossem alguns detalhes: os objetos não se tratavam de miniaturas e , antes de tudo, aquilo não se enquadrava numa simples brincadeira infantil. Retratavam , na verdade, uma tragédia de proporções gigantescas, do outro lado do mundo; dessas que se têm tornado, estranhamente, tão corriqueiras nos últimos tempos. Um terremoto de intensidade recorde no Japão, acompanhado de um tsunami devastador que varreu o norte do país. Prejuízos incalculáveis, reatores nucleares emitindo radiação a céu aberto, mais de cinco mil mortes e milhares de desaparecidos.
Os grandes desastres trazem consigo a possibilidade de refletirmos sobre nossa pequenez diante da imensidão do universo. E as perguntas se sucedem e são inevitáveis. Por que nos últimos anos as grandes hecatombes têm se repetido com tamanha freqüência? Terremoto e tsunami destroçaram a Indonésia; um outro terremoto quase que aniquila o Haiti, depois o Chile e a Itália. Sem falar na tempestade de Nova Orleans , há poucos anos. E as chuvas devastadoras de Pernambuco na ano passado e este ano na região serrana do Rio e no Crato agora em Janeiro? Até que ponto estas catástrofes são mera coincidência; até quando são respostas à ação do próprio homem sobre o equilíbrio instável da natureza? Uma outra questão: as Usinas Nucleares, depois do acidente asiático, devem continuar sendo exploradas como uma forma segura de energia, em substituição ao petróleo e a outras formas mais limpas , como a hidroelétrica?
Quem acompanhou o noticiário da tragédia japonesa deve ter percebido algumas peculiaridades. A primeira delas é o quanto a organização e o trabalho preventivo são capazes de minimizar as baixas. Quando se computarem todas as mortes japonesas talvez alcancemos 30.000 perdas. No Haiti foram mais de 200.000 e na Indonésia mais de 300.000. Como o Japão conseguiu impactar de forma tão forte as suas mortes? Através da tecnologia e do treinamento do seu povo para as situações de calamidade. Esta parece ser uma das maiores lições que depreendemos do desastre japonês: é possível sim, com medidas preventivas, não evitar os fenômenos naturais,mas prevê-los com alguma antecedência e diminuir de forma significativa as perdas humanas.
O maior exemplo, no entanto, que arrancamos da gigantesca tragédia que já se abateu sobre o Japão é a maneira destemida, contida e resignada com que os japoneses enfrentaram a devastação. Sem choros convulsivos, sem atropelos, sem apelos dramáticos. Mesmo diante da fome , da perda e da morte o povo manteve-se controlado: nada de saques, de correrias, de salve-se-quem-puder. Entre nós latinos, afeitos às grandes manifestações sentimentais, á solidariedade de superfície, às lágrimas fáceis e aos apelos dramáticos, a reação japonesa parece-nos estranha e fria. Mas a sua resignação passa-nos a certeza absoluta que, tendo suportado tantas guerras, tantos desastres naturais e duas bombas atômicas; os japoneses forjaram sua alma no fogo e estão prontos a resistir a todas as intempéries. Calmamente se debruçam sobre os escombros e remontam , peça por peça, o quebra-cabeças da sua vida e da sua história. Como se nada houvesse acontecido, como se o tsunami tivesse vindo apenas fechar um ciclo e trouxesse consigo a anunciação de tempos menos turbulentos e mais felizes.


J. Flávio Vieira

quinta-feira, 17 de março de 2011

O silêncio dos idosos - Emerson Monteiro

Se há qualquer característica especial nas pessoas idosas, que sacode essa convicção irreverente que os jovens carregam de peito aberto, feita medalha de vitória colada ao peito, se trata do silêncio contundente, grave, que adorna esses senhores, essas senhoras, quietos pelos cantos à espera do farnel da derradeira viagem.
Parados, de olhares vazios presos nas extensões infinitas do espaço, eles mergulham na distância quais enxergassem de longe as portas do Reino, o porteiro e sua chave crepuscular. Às vezes, sorriem consigo, cúmplices das saudades que, presunçosas, amaciam as bordas das camas, a alvura dos lençóis e os braços gastos das poltronas puídas, nos abrigos transitórios.
Quando outros chegam, e quebram o clima sério dessas virtudes solitárias, de leve abrem o pano dos olhos baços e desprendem simpatia marota, como quem sabe para além dos saberes daqui de fora. E largam restos de sociabilidade nas poucas interrogações que lhes perseguem, atentos aos anos posteriores que ainda restam.
Pois bem, a solene presença desses avozinhos, campeões da longevidade, contempla netos e bisnetos, suas últimas relíquias preciosas. Passeiam pelo ar já rarefeito as ilusões que sumiram nas esquinas do passado, dança de cadeiras das gerações que saem bem devagar à coxia do teatro. Nisso, umas nesgas de alegria ainda persistem a escorrer da ponta dos dedos aos cabelos macios dos inocentes, atitude instintiva, débeis carícias abandonadas aos que tanto ensinaram a amar.
De outras feitas, contudo, ali, assim, fecham o semblante e demonstram lances pessoais de uma luta interna que lhes joga poeira às redondezas do rosto. Quais testemunhas isoladas nas primeiras sessões dos tribunais que defrontarão no campo da Eternidade, envoltos na eloquência desses julgamentos de consciência, crescem ao sabor da chama das réplicas os olhos murchos de lágrimas secas.
Postos de face com a face do destino, o drama secular das irrealizações humanas chora, quase grita. Por isso, angustia com força quem andar por perto deles, nos respingos da tempestade, no mar imenso dos sentimentos e ações antigas. Sofrer, com eles, esses tais silêncios incontidos das crises terminais dos sonhos significa, também, sofrer dentro da gente o alerta de que se aproxima a transição das certezas. Pernas parecem quase não cumprir os trechos finais da estrada de volta para casa. Olho, contudo, assustado essa indiferença dos nossos heróis que, agora, desfazem gavetas e arrumam as malas. Aquela gravidade carrancuda virará o rosto nessa hora da verdade, impondo maior respeito. Monumentos de outrora, erguerão a riste o indicador e reclamarão coragem aos que permanecerem, quando vestirem o manto da despedida. Nessa hora, vencerão a batalha das quimeras morais e dores físicas, e repousarão, em paz, nos braços aconchegantes da ausência inevitável.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Doses amargas - Emerson Monteiro

Diante de alguns desses acontecimentos recentes que chegaram aos nossos pousos em forma de matérias televisivas, perguntas se misturam com desencantos. Onde antes havia segurança técnica e bonitas paisagens, cresceram ondas de gravetos sacudindo a tranquilidade relativa de populações inteiras. Mares e chãos reverteram ordens estabelecidas no país silencioso, pondo para vagar sem destino atônitos sobreviventes.
Espécie de susto parece tomar conta dos noticiários, numa sucessão de atividades naturais imprevistas, quando as indagações tradicionais ainda nem respondiam as nuvens de inocência das mentalidades, por isso dominando o espetáculo do momento. Chuvas, marés, tremores de terra, e, para completar a bizarrice dos medos atuais, usinas atômica expelem radioatividade no céu; além de queda, coice. Tudo o que os japoneses menos queriam, depois dos dramas medievais de Hiroshima e Nagasaki, aos fins da Segunda Guerra, seria lidar, outra vez, com aquela maldade tenebrosa das chagas invisíveis que intoxicam os ares.
Outro dia, no consultório do dentista, uma professora explicava, a propósito das mudanças do clima da Terra, avaliando existirem interesses secretos na divulgação das supostas transformações da natureza, na intenção de alarmar para o uso indiscriminado dos recursos originais. Grupos dominantes reservariam a si o domínio desses recursos; o restante da humanidade ignora seus frutos e benefícios. Enquanto isto, a mídia alimenta o pacto da ignorância das massas.
Paro e penso o quando seres humanos caminhariam distantes do controle desses fenômenos naturais. A casa comum do Planeta às vezes dá sinais de exaustão e indica sérias mudanças além das previsões oficiais. Gelo derrete nos polos, rios secam abaixo das médias conhecidas, tragédias impõem custos de vidas humanas, secas, deslizamentos e inundações trocam de lugar nas colinas quando menos esperados, uma série de ocorrências exóticas no clima que sacoleja as bases do eterno, forçando apreensões e ocasionando sustos.
Filosofar numa fase destas virou exercício de conformação, reconhecimento das urgentes necessidades dos aspectos religiosos da cultura. Há milênios, as civilizações impõem as suas normas aos fatores da Terra, sem, contudo, acreditar pudessem atingir os limites da tolerância. Porém nesse turno, quando impactos chegam quase em tempo real aos restaurantes, lares, supermercados, a cores de cristal líquido, no mínimo levam arrepios a percorrer espectadores desconfiados, nas tamanhas reviravoltas impacientes, tragédias anunciadas que afundam o palco de onde muitas verdades saíram para bem longe de grandes certezas agora abandonadas.

terça-feira, 15 de março de 2011

PROGRAMA CARIRI ENCANTADO – SONORIDADES (16/03/2011)

MANEL D´JARDIM & CONVIDADOS: ARRANJOS E FLOREIOS MUSICAIS

Foto capturada do blogue Cultura do Cariri

Manel D’Jardim, de acordo com o ponto de vista, pode ser definido como um músico endiabrado ou um músico divino; ou, talvez, a melhor definição possa ser as duas conjugadamente: um músico divinamente endiabrado. Afinal, bem e mal são faces de uma mesma moeda.

O escritor José Flávio vieira, foi por demais feliz e preciso ao falar sobre o talento e a personalidade sempre controversa de Manel D’Jardim:

“Se existem almas penadas, um poeta nosso definiu, com a genialidade única dos poetas, Manel D’Jardim é uma alma empenada. Com a mesma maestria com que empena aquela tradicional maneira de pensar e sentir a natureza, nosso artista empena o som, empena os costumes e as etiquetas, empena aquela embolorada maneira de arpejar o violão. Extremamente lúcido na sua loucura, Manel mostra a todos que a beleza e a verdade se escondem na dissonância da vida e que para transformar o planeta é preciso abrir novas sonoridades, criar novas veredas, transvê e desformar a harmonia imutável deste mundo. Seu violão derrama as pétalas das flores do jardim que floresce no seu sobrenome e na sua alma. Úmido de irreverência, prenhe de rebeldia, seu som mais desperta e fustiga que tranquiliza. É como se ensinasse a todos que a reta certamente não é o menor caminho entre dois pontos e que é preciso provar da fruta doce do bem e do mal. (...) Empenem e empinem as asas da imaginação e curtam a música sacrossantamente profana desta alma empenada”.

O programa Cariri Encantado Sonoridades vai, portanto, empenar os ouvidos, avisados ou desavisados, com a sonoridade de Manel D’Jardim & Convidados.

REPERTÓRIO MUSICAL
1. Paula e Bebeto (Caetano Veloso e Milton Nascimento)
2. Maninha (Abidoral Jamacaru e Cláudia Rejane)
Participação: João do Crato e Abidoral Jamacaru
3. Na baixa do Sapateiro (Ari Barroso)
4. Leia na Minha Camisa (Luiz Carlos Salatiel e Geraldo Urano)
Participação: Luiz Carlos Salatiel
5. Something (George Harrison)
Participação: Hélio Ferraz
6. É (Gonzaga Júnior)
Participação: Demontier Dellamone
7. Carinhoso (Pixinguinha e João de Barro)
8. O Poeta (Abidoral Jamacaru e Xyco Chaves)
Participação: Abidoral Jamacaru
9. Me Deixa em Paz (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro).
Participação: Leninha Linard
10. Punk da Periferia/Rock do Segurança (Gilberto Gil)
Participação: João do Crato
11. Nossa Canção (Luiz Ayrão)
Participação: Luiz Carlos Salatiel
12. Bye Bye Brasil (Chico Buarque de Hollanda)
Participação: Zé Nilton
13. O Xote das Meninas (Luiz Gonzaga e Zé Dantas)
14. Quem Fez o Mar Sofrer (Abidoral Jamacaru)
Participação: João do Crato
15. Semente do Amor (Mu e Moraes Moreira)
Participação: Rinaldo

FICHA TÉCNICA
O programa Cariri Encantado Sonoridades é produzido pelas Officinas de Cultura e Artes & Produtos Derivados – OCA, e transmitido todas as quartas-feiras, das 14 às 15 horas pelas ondas sonoras da Rádio Educadora do Cariri AM 1020.
Seleção musical e redação de Carlos Rafael Dias.
Apresentação de Luiz Carlos Salatiel.
Operação de áudio de Iderval Silva.

segunda-feira, 14 de março de 2011

A Coluna da Hora - Emerson Monteiro


Dos logradouros cratenses que possuem mais nomes, a Praça Francisco Sá vem recebendo várias identificações conforme características que apresenta no decorrer de sua ativa história de porta principal da cidade: Praça do Cristo Rei, da Estação, das Kombis, dos Ônibus, e Praça dos Pombos. Quando cheguei a Crato, na primeira metade da década de 50, era o quadro mais bonito dentre as outras praças do centro urbano. Recepcionara, em 1926, o primeiro trem vindo de Fortaleza, data de festa gandiosa, e merecera do prefeito Alexandre Arraes de Alencar, nos preparativos das comemorações do Centenário do Município, os melhores mimos de decoração.
Entre seus Ficcus benjamim e torceras de flores coloridas, edificara alguns dos monumentos alusivos àquela fase cratense: uma fonte luminosa, de que, hoje, só restam resquícios; a Coluna da Hora; e a Fonte da Samaritana; estas belas e intactas, apesar da carência dos maiores cuidados.
A Praça da Estação cumpriu importante papel nos itinerários de minha história de infância e morador do Bairro Pinto Madeira à busca dos acessos da vida social do lugar. Escreveu não leu, cruzava seus canteiros e desviava de seus postes de ferro prateado, o que, por maior empenho dedicasse, não escaparia, certa vez, de trombar num deles e colher galo dolorido bem no centro da testa.
A edificação da Coluna da Hora, monumento de bom gosto, encimada pela imagem de Jesus em escala adaptada às proporções do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, coube construir a Alexandre Arraes, no ano de 1938, sob orientação do arquiteto-escultor Agostinho Balmes Odisio, mestre italiano responsável pelo trabalho, segundo consta numa das placas do pedestal.
A execução da obra, por sua vez, ficou a cargo do mestre Vicente Marques da Silva, imaginário nascido em 06 de janeiro de 1908, na cidade de Juazeiro do Norte, e que viveu algum tempo em Crato, um dos irmãos de Raimundo Marques, Mundinho, o autor da Samaritana, inaugurada em 21 de junho de 1952, e goleador emérito do futebol de antanho, falecido vítima de acidente automobilístico num dos cruzamentos da cidade.
Dia desses, abordado por Aristides, decano personagem da AABB de Crato, ele indagava quando retornará o funcionamento normal do relógio da coluna, tão apreciado pelos frequentadores da praça, indagação esta que ora repasso aos titulares da municipalidade e responsáveis diretos pelo assunto.
Dentre os registros e citações que adornam o valioso monumento, duas falam de perto à alma de nosso povo, quais sejam: Cristo reina, vence e impera, dístico gravado em latim clássico. E Sede bem-vindo, nesta terra há lugar para todas as pessoas de boa vontade, palavras bem aos moldes da grandeza desta gente alencarina.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Uma amizade infinita - Emerson Monteiro


Eis aqui nestas palavras uma das provas da existência do Bem supremo, a amizade dos que conhecem amigos. Só quem possui um amigo pode considerar o seu valor. Inestimável o termo de comparar os amigos, e nem precisa dizer que falo dos amigos verdadeiros, pois amigo só verdadeiro, essa tonalidade maior das referências humanas, o amigo.
Quanto vale um amigo? Não há preço que possa comprar, porquanto não se acha à venda, inexiste supermercado de amigos, shopping de amigos, fábrica de amigos. Os amigos nascem no berço farto do coração; nascem, crescem e vivem para a Eternidade. Seres especiais, mutantes dos sentimentos altos da verdade, brotam nas calçadas frias das dificuldades, provam sua fibra nas solidões indesejadas e saem por cima, nos instantes críticos da jornada.
Amigos, de que gosto de falar aos meus filhos não caberem em mais do que nos cinco dedos de uma única das mãos. Uma vida é muita para tantos amigos do tanto dos dedos de uma mão. Amigos, espécimes raras e valiosas, que mantêm o silêncio até o dia em que surgem numa manhã, numa noite qualquer de sofrimento, e nos envolvem de luz e carinho, na força grandiosa do fervor que a eles pertence. A despesa reservada aos instantes da certeza em que há um pai, um irmão, um companheiro, indiferente às considerações dos elogios fáceis, entra porta adentro e preenche todos os espaços da dúvida e do isolamento.
Um amigo, uma barra de ouro brilhante. Um amigo, um tesouro ilimitado no tempo e no espaço. Um filho do Deus da bondade no crivo do interior da gente, um emissário das bênçãos superiores, divinas. Ah, que ventura reconhecer a realidade do sonho de um amigo, de uma amiga, essa dádiva inigualável de todas, imensa compreensão dos que desmancham em conforto as mágoas do desencanto. O saber sorrir, chegar junto, firmar compromissos inadiáveis, incondicionalidades e águas boas.
Falar nos amigos alimenta o veio dessa confiança nos valores inesgotáveis da glória eterna do Amor. Amigos, perfume silvestre das vitórias que nutrem a alma de virtude e paz, pura leveza de presenças silenciosas e vastas, pomos de territórios doces da concórdia, ganhos vivos da plenitude.
Isso de contar algumas considerações quanto aos amigos demonstra suas potencialidades e desperta a que se continue na busca desses personagens coautores da Criação, aliados nas ações positivas, otimistas crônicos e primorosos precursores da transformação de nossos critérios em resultados benfazejos, dos avanços mundiais da vontade no que haja para reverter os quadros tristes, nas madrugadas esplendorosas das cores de alvoradas magnânimas. Vivam os amigos, as amigas, hoje e para sempre!

quinta-feira, 10 de março de 2011

Em torno de nós mesmos - Emerson Monteiro



Fugir para onde, ninguém sabe das direções disponíveis, pois há, sempre, que acontecer o movimento só esse que se conhece, em torno do próprio eixo, isto que resulta da interpretação constante dos sítios que mostram suas fisionomias a todo instante, determinando marcas definitivas no direito ansioso dos que invadem o desespero e regressam exaustos das esperas de respostas diferentes, sem, contudo, garantir que, noutros lugares, que não sejam este aqui, existam meios de achar dois presentes, o atual e um outro, ou mais outros que revelem multiplicidade do eu. Almas de momentos, aqui e lá, desenvolveriam, com sobra, projetos independentes de liberdades potenciais.
Pois bem, examinar isso provável ocasionou a vontade monumental das grandes constatações. Andar em circunstâncias do território da alma da gente. Circunferências que buscam distância correspondente aos volteios de um carrossel, na determinação de centros imaginários da pessoa em si, na essência. Luzes que girassem velozes, nas sucessões de imagens a tocar vistas, indicando lugares e fios condutores de mudanças de lugar, chances das individualidades em festa noutros universos paralelos.
Quantas vezes, no entanto, se perdem as longas estiradas quilométricas de viagens infinitas, sem rever o ponto inicial das jornadas quase vida em mundos longitudinais, invés de concêntricos. Isso angustia, causa vertigens, porquanto deixar parecer morar em fitas desconexas o sonho da circunvolução em referência aos traços imaginários do centro do si mesmo, que corremos atrás para reunir e estabelecer, na concentração mental.
Uma molécula representa melhor a nucleação da esfera do ser do que lençóis voando ao vento, esgarçados painéis de texturas inúteis, jornais passados e cartazes envelhecidos, nas estradas pela vida. Blocos de tempo agregados em bólides que comprimem dias, soldas, emoções, sentimentos, pensamentos e ações, camadas sucessivas que confrangem a semente original objeto dos desejos e sonhos. No âmago das movimentações fervorosas de tais planetas espalhados na eternidade dos milhões das coisas gravitacionais, um comando de personalidade opera seus instrumentos de sobrevivência e continuidade, espécie de voo livre rumo às estações da felicidade; cá vamos nós.
E nessa excursão sideral o anelo de Deus, resposta maior do mistério ao ente dos começos e dos fins. Querer saber contém a efervescência do confluir das partidas, pomo fundamental das indagações oficiais da lógica primária. Portas e janelas que se abrem nas possibilidades dos novos êxitos e sucessos, alimentos de continuação dos passos pela trilha palpável das manhãs, tardes e noites, nos dias claros, roteiros grandiosos, sóis incendiários...

quarta-feira, 9 de março de 2011

A era do desperdício - Emerson Monteiro

A televisão mostrava imagens do seringal Nova Vida, município de Ariquemes, no estado de Rondônia. O que fora mata fechada virara cinza, após a ação de motos-serra e labaredas. Na trilha sonora, os números da tragédia. Haviam sido dizimados mais de quatro bilhões de dólares em madeira de lei abandonada nos desmatamentos. Quem atira com munição dos outros só dá tiro grande, enquanto a verde selva diminui a cada momento.
Isso numa fase brasileira quando tudo merece consideração, à custa dos fracassos administrativos para conter grileiros e predadores.
- Por que tanto esbanjamento? O planeta comum ainda terá de pagar quanto pela incompetência dos deslavados habitantes?
As respostas chegam por que sobram racionalizações e palavras: crise econômica, inflação, desleixo, alertas máximos, recessão, demanda reprimida, desindexação, subsídios, mercado externo, investimentos, privatizações, mercado interno, propriedade privada, macro-estruturas, monopólio, terceira onda, multinacionais, tecnologia de ponta, trustes, ganância, imperialismo. Nisto, a fome explode e o desemprego aflige os contingentes acuados de encontro ao futuro incerto.
Nos vários países, a perdição de descartar embalagens plásticas, metálicas, outros materiais raros e aperfeiçoados, sem qualquer intenção de reaproveitamento, demonstra a inabilidade humana para lidar com a sábia natureza.
A civilização refinou técnicas aplicadas em bases jamais concebidas. Veículos de massa anexaram ciências sofisticadas e não adotam conteúdo compatível, enquanto programas funcionam para embriagar as mentes de emoções irresponsáveis, como drogas eletrônicas. Dia seguinte, o tédio moral da falta de iniciativa das massas, que bloqueiam possíveis janelas com os espelhos da anemia crescente das sucessivas ressacas.
Preço da farra: a miséria dos países pobres para afirmação de imperadores contemporâneos que brincam de esconde-esconde nuclear, ou saem vadios na estratosfera, fotografando as luas de Saturno, galáxias a milhões de anos-luz, com todas as despesas pagas pelas nações, que nem águas têm para beber.
Boa-vontade e rigor, palavras símbolos numa época prever transformações dolorosas, na hora certa de cada coisa, pois dia de muito é véspera de pouco. Dia de tudo é véspera de nada!

Memória da Confederação dos Cariris – Encontro dos Grupos Artístico-Alternativos do Sul Cearense

Carlos Rafael Dias

Já não tenho mais aquela memória primorosa de outrora. Mas algumas lembranças teimam em permanecer neste cérebro que já dá os primeiros sinais de múltiplas escleroses.

Uma delas (lembranças) é a realização da Confederação dos Cariris (Encontro dos Grupos Artísticos- Alternativos do Sul Cearense), ocorrido, se não me falha a memória, em setembro de 1984.

Era uma época interessante. O Cariri fervilhava com o voluntarismo da juventude envolvida em movimentos artísticos diversos, de acordo com ideologias ou gostos estéticos. Em Crato, vários grupos ou movimentos artísticos com seus respectivos “baluartes”, como o Folha de Piqui – (sic) - (eu, Leonel Araripe e Wellington Marques), Flor da Terra (Willian Brito, Leonardo Monteiro e Paulo de Tarso Barreto), Associação dos Amigos do Parque (Wilton Dedê e Gilberto Filho, Teto), Sementes da Poesia (Genes Alencar e Albeniza Gomes), Mutart (Rogério Proença e Wilson Bernardo) e Raízes (Tancredo Lobo, Hermano Roldão e Hermano Jorge). Em Juazeiro, a atuante e aglutinadora AMAR (Associação dos Artistas e Amigos da Arte), liderada por Stênio Diniz, era a principal referência.

Ainda pairava na época o espírito de resistência coletiva que caracterizou a década anterior, com o Grupo de Artes Por Exemplo, organizado por Rosemberg Cariry. Este, por sinal, projetava-se além-região, à frente do jornal Nação Cariri, editado em Fortaleza, e estreava no seleto clube da cinematografia brasileira, dirigindo o documentário A Irmandade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, lançado naquele ano “de graça” de 1984.

A ditadura militar estava nos seus estertores, e respirava-se mais e melhor.

Na terrinha, pretendia-se sacudir a cena provinciana. Naqueles tempos ainda se acreditava no apoio decisivo do poder público para estimular a produção cultural e, consequentemente, sacudir a inércia reinante. Não existia ainda uma secretaria municipal de cultura e a reivindicação maior era por isso. Ou, como se costumava bradar, pela implementação de uma política cultural.

Por isso, a necessidade de realizar um evento que reunisse artistas e grupos artísticos alternativos ganhou força naquela conjuntura.

A ideia surgiu entre os participantes do movimento que pulsava em torno do jornal Folha de Piqui e ganhou adesão dos demais artistas de Crato e Juazeiro, que na época mantinham uma constante articulação.

O primeiro passo foi confeccionar um cartaz, a cargo do artista plástico Normando Rodrigues, que o fez de forma primorosa, em xilogravura. O segundo, divulgar o evento e ideia nas demais cidades que detinham expressão na produção artística da região, como Assaré, Barbalha, Farias Brito, Várzea Alegre, Icó, Iguatu, Lavras da Mangabeira e Mauriti, dentre outras.

Participei da comitiva que visitou Mauriti, juntamente com Luiz Carlos Salatiel, Tancredo Lobo e Francisco Cunha, quando aquela cidade foi escolhida para sediar o encontro.

A lembrança do encontro em si é bem mais forte de que todas as etapas de sua preparação.

No início da tarde de uma sexta-feira, Salatiel me apanhou no seu carro e fomos, em seguida, apanhar o poeta Geraldo Urano, que levou uma bagagem inusitada: uma cesta de palha com uma ou duas mudas de roupa.

Em Mauriti, ficamos hospedados em uma escola, onde o encontro foi realizado, incluindo parte da programação cultural, visto que o espaço tinha um auditório para as apresentações artísticas.

A primeira apresentação foi uma peça de um grupo de Juazeiro, dirigido por Lucion Caieira, que abordava a loucura clínica. Geraldo Urano, já embriagado, discordou do enfoque da peça e invadiu o palco em pleno ato. Normando Rodrigues o retirou de pronto e delicadamente. A incauta plateia, acho, deve ter achado que a cena fazia parte do espetáculo. Ou não deve ter entendido patavinas do que estava acontecendo.

O dia seguinte, um sábado, foi dedicado, manhã e tarde, para os debates e resoluções. Lembro simplesmente que aprovamos, como palavra de ordem principal, o chavão: política cultural já!

Neste dia aconteceram tantas coisas que minha agora limitada mente não dá conta de tudo. Apenas que o encontro, de natureza artístico-cultural, recebeu também um representante de outra área, do ramo funerário.

Não, ninguém morreu no ensejo. Graças a Deus. É que, chegou a Mauriti o empresário do setor mortuário (caixão, mortalha e afins), conhecido por Dudu Funerária. Foi e levou Socorro Sidrim (ou teria sido o contrário?).

Dudu, mesmo sem contribuir na discussão a que se propunha o encontro, foi uma figura ímpar no contexto. Ele parecia até iluminado.

Ele funcionou como um “anjo da guarda” de Geraldo Urano, que permaneceu todo o encontro em estado de “embriaguez e desordem”. Dudu era só puro carinho e cuidado com Geraldo. Lembro do episódio em que Geraldo mergulhou, sem saber nadar, no tanque da Associação Atlética Banco do Brasil, onde se realizava a confraternização final do encontro, na manhã do dia de encerramento do evento, um domingo.

Quem se atirou de imediato para resgatar Geraldo? Claro, Dudu Funerária, desfazendo aquela imagem sinistra que sua alcunha imprimia.

Naquele momento, ele se transmutou em Dudu “Maternidade”.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Mundos virtuais


A freira dominicana Maria Jesús Galán foi afastada , recentemente, de sua ordem religiosa, após 35 anos de reclusão. A religiosa é espanhola e carrega nos lábios um sorriso solto de quem anda de bem com a vida. A expulsão , em si, não seria notícia, não fosse pela causa que levou de volta a irmã Maria a este mundo ríspido e cruel. Galán é uma usuária assídua da internet, usa o computador para ler, ouvir músicas e fazer amigos. Sua página no Facebook arrolava quase seiscentos seguidores. A ordem dominicana possivelmente interpretou isto como uma perigosa quebra de reclusão, a freirinha estava periodicamente fugindo para o cyberspace.
Claro que os dominicanos têm lá suas regras, próprias do fechado clube que criaram e , como tal, têm o sagrado direito de escolher quem pode ou não freqüentar as suas hostes. A atitude, no entanto, me traz um mote para refletir sobre a terrível dificuldade que têm as religiões de acompanhar o dinamismo inexorável do tempo e da vida. Os templos todos terminam por ter um cheiro mal disfarçado de fuligem, de mofo, de teia de aranha.
As grandes religiões alicerçam-se em livros sagrados que foram escritos pretensamente sob inspiração divina há muitos séculos atrás: O Talmud, o Alcorão, a Bíblia, o Tipitaka, o Rig Veda, o Zend Avesta . Respeitemos todos os religiosos e acatemos a sacralidade destes livros. Mesmo assim, vem uma grande pergunta: mesmo sagrados e inspirados, quem os interpreta , quem os traduz, quem os ensina ? Ora, várias gerações de sacerdotes,místicos, beatos todos eles humanos, falíveis, eivados de paixões e defeitos. Mesmo assim, se outorgam poderes especiais e se apresentam como representantes legais do Homem, sem apresentarem, nunca, uma procuração assinada pelo Ser Supremo. Pois são justamente esses inúmeros sacerdotes falíveis que interpretam os desejos mais insondáveis de Deus. Montados neste poder supremo: criam regras, cospem sentenças, ditam códigos de ética, loteiam os céus e cobram pedágio, a todo momento ,neste caminho que pretensamente levará ao Shangri-lá da eternidade. A interpretação apaixonada e tantas vezes tendenciosa dos livros sagrados levou a tragédias históricas inimagináveis: a Inquisição, as Cruzadas, as Guerras “Santas”, as Jihads, os “Homens Bomba”, o genocídio indígena no Novo Mundo. Seria possível sair de um Ser Onisciente regras absurdas como : a proibição de transfusão de sangue; das crianças brincarem em parque de diversão; do uso da camisinha na prevenção da AIDS; a demonização do sexo e do prazer; o preconceito terrível com a diversidade sexual; o apedrejamento público de mulheres em caso de adultério ?
Além de tudo, esses livros escritos, alguns há milhares de anos, teriam condição de contemplar o mundo atual, com sua vertiginosa evolução ? Barriga de aluguel, Clonagem, Células Tronco,Fertilização in vitro, Internet, Globalização ? Claro parece que todos esses livros necessitariam de um upgrade providenciado pelo próprio Autor e não por seus pretensos procuradores.
A expulsão da madre Maria Galán é um nítido sinal de como as religiões estão presas ao passado . Emboloradas, não conseguem interpretar os novos tempos e suas complexidades. Fecham-se em guetos e vomitam ordens e leis ultrapassadas. Em tempos de cirurgia robótica ainda teimam em curar as chagas do corpo e do espírito com cataplasmas e sanguessugas. Madre Galán há de facilmente perceber que o mundo real é esse que ela vê agora fora dos muros do claustro, lá dentro o que existe é um universo virtual, fictício igualzinho ao que ela navegava quando acessava as páginas do Facebook.


J. Flávio Vieira