Aos que virão!

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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Heróico Resgate do Poço do Sabugo

Taí! Digam agora que não há possibilidade de consenso em Matozinho! Perguntem a qualquer guri, em beira de rua, qual a página mais dramática na história da vila e dou minha cara a bofete, se a resposta não for única e inequívoca: O Desmoronamento do Poço do Sabugo. O episódio se passara muitos anos atrás, mas a tragédia havia sido perpetuada, geração após geração, pela aguçada língua do povo. E, claro, como em toda história oficial ou oficiosa, o fato foi ganhando novos matizes, novos temperos com o fito de a especiaria ir se tornando mais palatável, mais adaptada aos mutáveis mistérios desta espécie de culinária. A versão que escolhemos nos foi narrada pelo velho Felinto Gomes, um cabra mais sério que fundo de touro, econômico de gestos e palavras, um homem muito mais propenso ao substantivo que ao adjetivo e advérbio. O leitor há de me interrogar se é esta a descrição mais confiável da história. Quem lá diabos é que sabe? Esta escolhi confiado no aval que Felinto me apresentou: um bigodão negro que lhe imprimia uma cara austera como se tivesse engolindo, a contragosto, um anum.
Tempos de seca tirana em Matozinho. Até menino chorava lágrimas liofilizadas. O prefeito Sinderval Bandeira andava com a moral mais baixa que diferencial de cururu. O açude do Sabugo há mais de dois meses que batera piaba. A Vila se via abastecida , a duras penas, por carros pipas que próprio filho do edil alugava à prefeitura. A água vinha de Bertioga: salobra e barrenta. Os matozenses reclamavam mais do que bode em dia de dilúvio . Bandeira, na tentativa de melhorar um pouco mais a popularidade, conseguiu, com o governador, a construção de um poço Amazonas. Imaginava que, se tudo desse certo conforme as previsões do marcador de cacimba, haveria condição se sanar o problema ao menos parcialmente. Corria o risco de ver o filho perdendo a boquinha, mas , por outro lado, quem sabe, semeava um pouco de esperança no povo. O próximo ano , não podia esquecer, era ano eleitoral.
A escavação começou em ritmo acelerado. Sinderval contratou Pedro Pebote e seus seis filhos e o pau comeu no centro. Os Pebotes tinham este estranho sobrenome e eram dados a um carteado e a uma caninha, mas trabalhavam com afinco. Em uma semana haviam aberto já um bueiro enorme. Desapareceram buraco adentro. A construção poderia até andar mais rápida, não fosse o terreno pedregoso e a necessidade de botar fogo em pedra várias vezes por dia. Os tiros se ouviam de longe e, se de início assombraram o povo, em pouco já faziam parte do cotidiano da vilazinha. Apenas um contratempo ocorreu: cavavam, cavavam e nada do veio d´água. Um dia, descidos mais de quarenta metros terra abaixo, finalmente a água brotou com facilidade para alegria de Quinca e dos seus Pebotes. Sinderval regozijou já contabilizando a futura colheita na boca da urna.
Os Pebotes iniciaram, então, a parte final do trabalho. O revestimento interno do cacimbão com tijolos, montados numa enorme manilha aposta, cuidadosamente, no fundo do poço. O ofício , de risco, mantinha os pedreiros e serventes suspensos por um andaime, controlado por um sistema precário de roldanas. Aparentemente a história vai chegando ao final, mas se faz mister abrir, antes um parêntesis.
Os Pebotes vinham recebendo semanalmente os seus proventos. Acontece que os Cangatis, que faziam oposição a Sinderval, levaram a Quinca, uma denúncia. A verba destinada à construção do poço, pelo estado, previa o triplo da mão de obra cobrada pela equipe e, pior, eles estavam assinando recibos, ingenuamente, como se percebessem o total da verba prevista. Descoberta a tramóia, os Pebotes se revoltaram. Avisaram, numa sexta-feira á tarde, que estavam parando as obras e que só voltariam ao trabalho se lhes fosse devolvido o roubado, e mais : iam espalhar a Bandalheira. Sinderval informou que houve um mal entendido , que fossem para casa, fechassem o bico. Ia resolver o problema.
À noite, não se sabe bem como, aconteceu a tragédia que marcou indelevelmente a história de Matozinho. Houve um acidente, o poço desmoronou em parte e, pior, os Pebotes estavam presos lá embaixo, nos escombros. A notícia se espalhou rápido e causou comoção na cidade. Neste preciso ponto as versões divergem sobremaneira. O que segue é pois apenas um dos ramos da mesma história: o ramo Felintiano.
Segundo Gomes, o desmoronamento, na verdade, ocorreu por mero acaso, mas , ao contrário do propalado por Sinderval, cedo da noite e, consequentemente, não havia ninguém no momento. O prefeito ao saber do ocorrido, mandou, na madrugada, buscar os Pebotes de urgência, avisou a suas famílias que iam trabalhar em hora extra e os esconderam na fazenda de Sinderval de forma incomunicável. Espalharam então a notícia do ocorrido e que iam tentar um resgate heróico daquelas operários tão queridos.
Em pouco, o açude do Sabugo encheu-se de uma multidão de curiosos. Armaram barracas negociando bebidas, meninos vendiam Dim-Dim e pirulito. Outros guris empinavam papagaio e jogavam peteca. Organizou-se, rapidamente, uma brigada de salvação. Conversa vai, conversa vem, preferiram cavar um poço paralelo ao outro para o resgate, uma vez que o original corria novos riscos de soterramento e não havia segurança suficiente para trabalhar dentro dele. Formou-se uma imensa galera na beira do poço pronta a dar pitacos e palpites e as apostas começaram a correr soltas: quantos dias até chegar lá; quantos sobreviventes; quem escapa dos Pebotes; a corda quebra ou não quebra. Sinderval, desde este dia , não saiu mais da boca do poço e chorava como um desalmado. Por mais de uma vez tiveram que dar palmatoradas em meninos que jogavam pedras dentro do poço e furaram a cabeça de mais de uns cinco socorristas. O Poço do Sabugo virou a grande atração de Matozinho. Passados uns dez dias, finalmente, a brigada informou que o novo poço tinha chegado na altura dos escombros. Sinderval marcou para o dia seguinte , a gloriosa data do resgate. Cuidou, no entanto, de fornecer na noite anterior, canadas e mais canadas de aguardente aos renitentes que vararam a noite. Lá para as três horas da manhã, toda a audiência já estava capotada, em volta do poço. A negociação já havia sido feito com os Pebotes, sob juras de silêncio obsequioso. Os pedreiros foram colocados, na madrugada, dentro do poço recém-escavado, sem que ninguém visse.
Pela manhã, então, na presença de quase toda cidade, deu-se o resgate milagroso. Desceram primeiro dois socorristas para ajudar na perigosa tarefa.A corda desceu, poço abaixo, e, como por milagre, um por um dos Pebotes foram retirados lá de dentro. Fora, um Sinderval banhado em lágrimas, abraçava a todos e amparava os familiares que urravam num misto de alegria e desespero. Não cabiam perguntas em meio a tanta felicidade. Como haviam sobrevivido embaixo d´água , sem comer? Como haviam passado de um poço para outro, se o segundo, por erro de cálculo, era bem mais raso do que o primeiro?
Após a saída dos Pebotes, Sinderval, num ato solene, lacrou definitivamente os dois poços. Fez isso mesmo sabendo que após o resgate os dois socorristas que mergulharam primeiro , não mais foram encontrados. Ficavam ali, selados, como um monumento à bravura indômita da gente de Matozinho : os que sobreviveram e os que se perderam no buraco. Como o povo tem mais sede de heróis do que de água, Sinderval foi eleito no ano seguinte com uma votação recorde. E foi desde este tempo que os pedreiros do Poço do Sabugo passaram a ser conhecidos pelo estranho sobrenome, dizem que batizados pelo velho Felinto Gomes : Pebote: uma mistura de peba com caçote.

J. Flávio Vieira

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