Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012



“A mim me interessa o povo, há três séculos capado e recapado, sangrando e ressangrando”. (J. Capistrano de Abreu).


Meu Caro J. Flávio Vieira
Como escritor lhe saúdo neste momento, assim o quis os meus pares desta casa.
Não se considerem desonra as minhas palavras direcionadas para afirmação da inexistência, até a pouco, de alguém, cuja escrita desse conta das dimensões da cultura, dos costumes e da história criados pelo nosso povo. Temos sim, um legado de muitos excelentes escritores, oriundos principalmente da fase áurea dos anos 50, quando a confluência das bases materiais e humanas da época criaram as condições para se pensar e fazer a literatura e a história regionais.
No entanto, o discurso histórico sobre nossas origens valeu-se dos documentos e monumentos produzidos sob a ótica eurocêntrica de viés evolucionista, e em nenhum momento alguma voz se atreveu a palmilhar a difícil senda de uma história a contrapelo. Se assim o fizesse, denunciaria os fundamentos da História marcadamente positivista e mistificadora das verdades do vencedor. Descobriria o quanto de ruínas trouxe a ideologia da aceleração do tempo histórico, embutidos na ânsia de “civilizar” povos distantes dos centros de poder. E como esse processo onde se alinhavam as ideias dominantes do Reino e da Religião engendrou um mundo desintegrado da voz, da vez, do tudo ou do nada do outro.
A Literatura em suas diferentes linguagens acompanhou de certa forma esta racionalização. Sobram apologias, loas e legitimação aos feitos do branco colonizador. Quando se procura de alguma forma enaltecer a positividade de nossos povos ancestrais, no caso, os índios, invoca-se uma condição nula para os primeiros donos daqueles tristes vales: a de guerreiros. Ora, quem fez a guerra não foram eles. Os nossos indígenas foram compelidos a ela. Em condições absurdamente desvantajosas partiram em defesa de sua sobrevivência. Sobrevivência que falou mais alto quando serviram a forças públicas ou privadas em defesa de interesses que não eram os seus. Nela, (na literatura) somo felizes, gentis, passeamos entre canaviais, nos compadreamos com nossos patrões, os grandes nos permitem a sombra... Este ideal de igualdade mascara a hierarquia que se implantou na nossa organização social, para dizer que as coisas estão todas em seus devidos lugares. Então, para que o enfrentamento no plano da crítica histórica e literária?
Louve-se de bom grado o discurso da Literatura de Cordel. De certa forma a Literatura de Cordel foge desse viés consensual quando exprime, à guisa de reportagem, o drama do sido confrontado na trama da utopia e da realidade. Aqui a narrativa põe para enxergar “o outro olho de Lampião” da História, metáfora para dizer que o que estava ofuscado na narrativa da História do vencedor, de repente aparece translúcido e falando, e dizendo, porque foi trazido para isto pela coragem do escritor que se desvencilhou das amarras ideológicas da História de mão única. Aqui aparece a festa, a alegria, a maldade e a bondade dos desejos humanos porque quebra o plano de uma história única e permite a inserção de outras histórias, onde se encontra a realização da utopia.
Nesse plano de circularidade plena dos personagens do sido ou do acontecido, ou seja, do outro reprimido pela História, acredito situar-se a escrita do homenageado, o escritor cratense J. Flávio Vieira. Essas observações, currente calamo, sobre a narrativa cordelista, no meu entender, estão presentes na obra de nosso escritor.
E mais: Ele entroniza na Arte Literária em nosso meio a outra forma de dizer o mesmo. Para tanto adota com muita sabedoria um instrumento da Arte Literária – a alegoria (*), justamente no sentido de “dizer o outro”. E assim o fazendo ilumina a História, confere brilho ao que era opaco, desencanta o que estava encantado,  introduz a alegria do outro, -  do outro que não conta, mas estaria ali ajudando na construção de Tebas, na construção  da Cidade de Deus, na construção de Aimará, de Matozinho, de  Craterdan;  o outro  de carne e osso, que fala, que age e que faz esta terra onde “há lugar para todos aqueles de boa vontade”, porque foi trazido para isto pela coragem do escritor que se desvencilhou das amarras ideológicas da História de mão única. 
Essa passagem de seu livro “O Mistério das treze portas no Castelo Encantado da Ponte Fantástica”, quando a serpente fala para um atônito Mateu, solitário de uma história que se realizou como utopia, é exemplar:
Mateusss, o que dá alma a um Reino não ssão os prédiosss, as roçasss, os pássarosss, os riosss. Nem o povo. Muitosss habitantesss não têm uma identidade própria e, como uma cabaça sssolta no rio, ssseguem, sssem parar, o curso das águasss. Um Reino, como uma pessoa, precisa de um essspírito. E quem preenche o essspírito de um Reino sssão figurasss encantadasss e especiaisss: poetasss, profetasss, beatosss. São elesss que guardam consigo o encantamento de um reino. Essesss são a chave de sssuas  alegrias e de sssua felicidade”... E conclui: “Encantadasss todasss  asss pessoasss mais importantesss Aimará ficou sssem sssuas fadasss e ssseus duendesss e, sem elesss, o Reino perdeu a cor, o aroma e o sabor”.
Eis a grande contribuição do autor para a reflexão da interface da Literatura e História: a flexibilização da narrativa para concretizar outras possibilidades do que poderia ter acontecido. Com isto, aparecem os outros, “todos os outros possíveis à História, tornando, ‘possíveis’ até mesmo os impossíveis da História”.
Finalizando, os escritos J. Flávio Vieira tem necessariamente um refinamento da visão antropológica sobre as coisas do mundo, naquilo que ela tem de mais includente – o servir para pensar. O que ele propõe e o que exprime através de seus personagens, para mim, expressa o sentimento de um escritor que não tem lados, mas que tem princípios.

                                                   Prof. e Historiador Zé  Nilton Figueiredo

(*) O conceito de Alegoria segundo Walter Benjamim

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