Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Aprendizes da Vida, Operários do Nada


I

Existem poucas profissões tão especiais como a de agente funerário. A convivência próxima e diuturna com a morte , às vezes, faz desses seres figuras folclóricas, com cara de outro mundo. Poucos , porém, vêem de tão perto a fugacidade da vida e sentem como a transitoriedade da existência leva tão rápido ao socialismo final: reduzindo ao mesmo pó a ambição, o egoísmo , a miséria e a abastança do homem. Um amigo do ramo me conta das dificuldades do seu meio de vida. Primeiro, é difícil encontrar uma razão social para a empresa, pois é árduo fugir do aterrorizante, do mórbido e, muitas vezes, mesmo do ridículo. Nomes do tipo: “Funerária o Sorriso do Finado”, “Funerária Disparado para o Paraíso”, “Funerária Defunto Feliz”. Segundo, -- ensina ele -- é melhor evitar os slogans, por motivos idênticos : “Onde o Defunto tem vez” , “O defunto é duro, mas o pagamento é mole”, “Leva você ao céu e não pro beleléu”. Em terceiro lugar, -- explica ele com ar professoral-- o agente funerário deve evitar fazer visitas a doentes, porque sempre pode parecer que está ali por um escuso e misterioso interesse e o paciente poderá concluir que o volume que ele carrega no bolso, ao invés da carteira, seja a trena . Em quarto lugar, frisa o nosso fúnebre amigo, não é também de bom feitio lançar promoções como: “Pague um, leve dois” , “Compre o do sogro que a urna da sogra é grátis” e coisas do gênero. Não é de bom alvitre , por outro lado, aparecer como patrocinador de excursões, esportes radicais, etc. , já que o povo pode concluir que aquilo não é um patrocínio, mas sim um investimento. Por fim, o nosso papa-defuntos , como se desse o fecho em uma tese de mestrado, conclui: o gerente dessa mortuária atividade deve evitar falar , publicamente: “O comércio está fraco”, “Já não acontecem acidentes como antigamente”, bem como mandar brindes no Natal para os cardiologistas, os neurologistas e os mototaxistas ( decerto seus maiores fornecedores). Sempre achei esta profissão inóspita, talvez porque, como médico, ela seja uma extensão da minha e começa sempre onde meus cuidados terminam , como se fora um atestado da minha impotência como esculápio.

II

“katacumba”(este é o apelido profissional do meu amigo), para os íntimos “Katá”, me conta um caso acontecido na Paraíba. Uma funerária contratou uma doméstica de uma residência vizinha a um Hospital. Sempre que esta ouvia movimento no Necrotério, telefonava , e os agentes vinham, pronta e rapidamente, oferecer seus préstimos. O convênio vinha funcionando azeitadamente, até um belo dia, quando faleceu uma pessoa influente na cidade. A família, com previsão do êxito desfavorável, já tinha contactado uma outra Agência . Alertados pela empregada, ao chegarem ao Hospital, eis que os agentes conveniados topam com a outra funerária já em plena atividade. Abriu-se a discussão e, em pouco, as partes se engalfinharam, em meio às rosas, às velas e às orações. Os familiares do falecido correram e, quando abaixou a poeira, o resultado da batalha: alguns braços quebrados, hematomas vários e o falecido de cócoras, no canto da sala, olhando para tudo aquilo com um distante olhar de sarcasmo. Como “Katacumba “ mesmo diz: poucos conhecem tanto a alma humana como nós, manipuladores da morte e do seu séquito: hipocrisia, dor, sado-masoquismo, flores tristes e inocentes, religiosidade doentia, pérfidos interesses-- servidos em meio ao caldo, aos risos , às lágrimas e ao desespero...

III

Uma outra história ele nos narra, ainda dos tempos em que vivera em Várzea Alegre. Morrera um seu amigo em um sítio próximo e ele fora convidado para o velório. Defunto pobre e sem herança a deixar. Os colegas reunidos , como sempre acontece, passaram a encher a cara de cana, na tentativa de afogar as próprias mágoas e, também, claro, prestando uma homenagem àquele pau-d’água que se livrava do mundo. Acontece que o sítio era separado da cidade pela íngreme Serra dos Cavalos e, quando por fim, resolveram transportar o caixão para o cemitério varzealegrense, os amigos estavam todos bêbados: “mais cheios de pau que caixa de fósforo”. Na primeira rampa já não restava uma única flor por sobre o féretro. Na subida da serra, o caixão já ia sem tampa e, ao entrar em Várzea Alegre, sob o som alegre de “Alá, Meu Bom Alá...”, o finado já vinha galhardamente sentado no caixão e, jura “Katá”, por aqueles olhos que um dia o álcool haverá de comer, vinha respondendo em coro ao refrão:
--“Ô que calor, ôôôô, ôôôô...”

IV

“Katacumba” tem um capítulo só para historiar as falsas ressureições. No Sítio São Vicente aqui em Crato em pleno velório, entre uma e outra “incelença”, alguém notou que o finado que repousava na sua própria cama, como que elevava a mão por baixo do lençol . Aí o mais próximo gritou: --“Tá Vivo! ”, e foi uma debandada geral. Em pouco tinha gente passando na carreira em Nova Olinda; três trepados no mesmo coqueiro na Ponta-da-Serra e consta que até um aleijado jogou para longe as muletas que o atrapalhavam e era o pole-position na Prova de Fuga ao Defunto. Só pela manhã, um bêbado se aproximou e descobriu o estranho milagre da movimentação embaixo das cobertas: um pinto pulara do terreiro por sob a mortalha, tentando bicar algumas sementes que piedosamente pendiam das flores que circundavam o falecido.
De uma outra feita, num enterro concorrido, disserta Katacumba, o filho da falecida, debulhando-se em lágrimas, não desgrudava do féretro. Quando este já se encontrava na beira da cova, nas despedidas últimas, o rebento choroso se abraçou pela derradeira vez com a urna, inconsolável. A terra fofa do cemitério fez com que o rapaz escorregasse e o caixão, desequilibrando-se com o peso, caiu dentro da cova com rebento da finada, por cima . No impacto, soou aquele barulho grave e cavernoso, como de um surdo que prestasse a última homenagem à falecida.. Nisso alguém, impressionável, nas últimas fileiras, gritou: --“D. Maria enviveceu!!! “ Aí foi uma correria geral, tendo na frente do primeiro pelotão o inconsolável filho, que saltara da cova, num átimo, engatara a primeira e em pouco, certamente, receberia a bandeirada da vitória.
Uma outra história não menos insólita, nos traz Katá de Assaré. Uma velhinha muita cambota fora encontrada sem vida pelos familiares. De poucas posses, compraram um caixão barato, com ajuda de amigos piedosos. Na hora de pôr a carta no envelope, no entanto, notaram que era impossível: as pernas já rígidas, em forma de arco, não entravam na urna. A solução então foi cortar um pedaço da corda do cacimbão e, com ajuda de alguns circunstantes, forçar as pernas uma de encontro à outra, sob pressão e atarando-as com a corda para mantê-las assim. Deste modo conseguiram colocá-la dentro da fôrma que a aguardava para última viagem. As exéquias vararam a noite. De madrugadinha , em meio às rezas, o pedaço de corda ( já puído pela ação da umidade da cacimba) esgarçou subitamente. Aí as pernas, agora livres da contenção, pularam de repente para fora do caixão, como se a defunta fizesse menção de sentar. Foi um espalhafato, negro ganhando a capoeira, até ontem tinham feito a chamada e pelo menos três pessoas que estavam no velório não mais tinham dado notícia. Diz que um está em Canindé, um outro passou por Cabrobó e “Chico Canela Dura”, um sujeito tido como paralítico, que faz ponto na feira , telefonou ainda cansado de Marabá , avisando à família que estava indo embora: sabe Deus para onde.
V

A mais incrível estória contada por “Katá”, no entanto, é difícil de se constatar a veracidade. Segundo ele ,ano passado, a Câmara de vereadores de Belorizonte criou um imposto para os túmulos, uma espécie de IPTU post mortem. Os familiares que não pagassem, parece coisa do outro mundo, veriam seus entes queridos serem arrancados dos túmulos e recolhidos ao ossário público. “Katacumba” relata que, após um dia de intensa atividade, sentou e cochilou, no intervalo de dois sepultamentos. Teve um sonho que mais lhe pareceu uma aparição: Assistiu a uma “Reunião da Associação das Almas desencarnadas e corpos Despejados”. O conclave se passava em uma etérea paisagem e era presidida por um espírito chamado Allan. Falavam sobre a medida tomada pela Prefeitura de Belorizonte que , em pouco, com a voracidade dos prefeitos brasileiros, deveria se estender para todo o país. Caíra por terra um dos mais sagrados direitos, o do “REQUIESCAT IN PACE” . Nem mais na morte se poderá ter paz, os jazigos perpétuos passam a ser Jazigos temporários.
Alguns espíritos reclamavam dos parentes que, se já os só visitavam no finados, agora, que já tinham posto as mãos na herança, não iriam ter nenhum ímpeto em pagar o novo imposto e estariam desobrigados até daquela anual penitência. As almas mais antigas ( se é que é possível pensar em idade, nesse caso) eram as menos preocupadas, elas diziam que ninguém é lembrado depois da terceira geração, até porque poucos tiveram o privilégio de conviver com os bisavós e é quase impossível lembrar-se daquilo que não se conheceu. A união de todos no ossário municipal era ,assim , o socialismo final da natureza, a junção de todos no mesmo pó, a comunhão dos elementos : sem passado, sem história e sem vãs lembranças .
Uma alminha atarracada ralhava com os outros, dizendo tinha acertado quando solicitou em testamento a cremação, destarte ,tinha livrado o Estado e os familiares desse derradeiro contratempo , embora soubesse que suas cinzas estavam lá no sótão da casa , menos lembradas que as do cinzeiro da sala e qualquer dia desses ,certamente , seriam enxotadas numa faxina qualquer.
O depoimento mais surpreendente, no entanto, foi de um espírito andarilho que disse ter nascido no nordeste brasileiro e logo novinho abandonado numa lata de lixo por uma mãe solteira. Por sorte foi resgatado por uma doméstica que morava na Favela “Suvaco do Urubu”, em Recife. Começou cedo a fazer pequenos furtos e foi adotado pela FEBEM de onde o expulsaram com a maioridade. Passou então a trabalhar como vigia de uma pequena indústria , casou, depois de ser despejado de duas ou três casas por não ter podido pagar o aluguel; ganhou no jogo do bicho uma pequena soma e comprou uma casinha, onde passou a morar com a família . Por conta de infidelidade separou-se e , mais uma vez na rua, deixou a casa com a mulher. Viajou ao Pará, na tentativa de melhorar de vida, passou a ser grileiro, até ser expulso ( pensava ele que pela última vez) , massacrado como tanto outros em Eldorado do Carajás . Sem familiares, sem passado, estava ele ali, prestes a ser expulso de novo, como um Ahsverus onipresente, uma reencarnação de Adão, condenado à expulsão eterna do paraíso .
Katá diz, pedagogicamente, não entender porque os homens, sendo livres para tomar os caminhos que melhor lhes aprouverem, passam a vida a criticar as estradas e veredas que os outros escolheram. A estrada, boa ou ruim, pavimentada ou asfaltada , curta ou longa, seja qual for ela, enfim, inexoravelmente termina aqui , conclui ele, apontando para o Cemitério.
“Katacumba” despertou do sono, acicatado por um colega que o chamava para mais um enterro. Olhou para um céu azul resplandecente que o convidava para a vida com todos os seus gozos e marchou, pisando na terra que o tentava sorver com os seus vermes, suas lições de nada e seus mistérios...Saiu.


J. Flávio Vieira

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