Aos que virão!

Quer queiramos ou não, os mitos alimentam os nossos sonhos e justificam a nossa existência.
Este blog reverencia os mitos deste nosso Cariri Encantado.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Valei-me, Meu São Luiz !


Matozinho sempre foi antenada com as novidades mundo afora. Nos primórdios da sua história, elas chegavam através dos tropeiros e caixeiros-viajantes. Eles eram esperados na cidade ansiosamente e traziam consigo não só suas quinquilharias, mas também  a moda e  costumes da capital. Nesta época a Vila ligava-se ao mundo por trilhas varadas apenas por animais de carga. Com o tempo, foram melhorando os meios de transporte e os caminhoneiros receberam a missão que um dia  tinha pertencido aos tropeiros. Os Caixeiros  investiram-se de ares de nobreza e passaram a ser chamados de viajantes e depois Representantes Comerciais. Com a melhoria do transporte e, mais tarde, a chegada da TV, as novidades do consumo aportaram em Matorzinho quase que de forma imediata, sem nenhum delay. Um outro fator importantíssimo na modernização dos costumes da Vila : o retorno de matozenses que fugindo da seca haviam emigrado para o Sudeste. Passada a fase de euforia, quando o concreto armado caía por fim nas suas cabeças, voltavam para sua cidade natal, geralmente contando vantagem, cagando goma, com a língua trôpega: cravejada de chiados, de  “uais” e de “carambas”.
                                   Nesses dias,  aportou em Matorzinho, vindo de “Sum Paulo”, um desses filhos pródigos :  Sonisvaldo Coité. Trabalhara no  Sudeste numa infinidade de empregos, até ter se especializado , finalmente, como garçon. Migrou daí para uma Pizzaria, onde terminou por se firmar como Pizzarollo, um dos mais consagrados da capital paulista, segundo sua própria avaliação.  Fizera um acordo com a firma e recebeu uma graninha boa, proporcional aos mais de dez anos que trabalhou por lá na beira do forno. Vaval , este era o apelido carinhoso que nosso pizzarollo já não reconhecia, trazia consigo já a determinação de se estabelecer no comércio da sua cidade natal : vou botar a primeira Pizzaria de toda Grande Matorzinho , vaticinou ainda no ônibus, nosso Coité. Mal  desembarcou ,com sua indumentária esdrúxula : botas, gorro do Corinthians, casacão de frio e um tênis paraguaio espalhafatoso; Vaval encetou os preparativos para sua empreitada. Sobe rua, desce rua, terminou escolhendo o ponto que lhe parecia perfeito.  
                                   João do Bozó havia sido proprietário de uma Bodega próximo à praça da Vila que findou evoluindo naturalmente para um mercadinho e, agora, ostentava o vistoso nome de : “Supermercado Santa Genoveva”. Há alguns meses, Bozó providenciara um “puxado” lateral no prédio, pensando numa ampliação futura das instalações. A idéia empacara e  o espaço estava até então inutilizado. Vaval negociou então o aluguel e encetou os preparativos para a instalação daquela que seria a pioneira em massas  em toda região. Antes da reforma, já abriu o letreiro no frontispício, em letras gigantes : “Sonny´s Trattoria” e, para que o povo não ficasse pensando que ali se vendiam  tratores,  logo abaixo explicava : “Pizzas”.  Como era de se esperar,  o povo acorreu célere em busca da novidade de Coité e o empreendimento  se mostrou um sucesso.  Até porque nosso empresário entendeu rapidamente que precisava adaptar a novidade aos costumes locais. Os sabores tiveram que ser acrescentados dos quitutes matozenses e aí surgiram as pizzas de macunzá, de panelada,de manzape,  de sarapatel e de sarrabulho. Às tubaínas , também, foi preciso acrescer algumas bebidas tradicionais como Gingibirra , Aluá e garapa de cana. Tirante estas necessárias adaptações, nada foi mais preciso corrigir para que a “Trattoria” se transformasse num dos empreendimentos de maior sucesso naquele cafundó do Judas. Vaval , inclusive, estava sonhando em levar filiais para Bertioga e Serrinha do Nicodemos. E quem sabe, no futuro, vender franquias da “Sonny´s” para todo país. Tudo ia tão bem!  Mas, como diz o velho Giba: “ pobre só tem as coisas até Deus descobrir, aí toma tudo de volta”.
                                   Algumas questões certamente contribuíram para a tragédia que um dia desabou sobre a “Trattoria”. Primeiro,  a proximidade com o Supermercado de Bozó. Era lá que Vaval se abastecia e por ali não existia prazo de validade de produtos: enquanto o tapuru não comesse toda a carne e o gorgulho esfarelasse todo feijão, negociava-se. Mas o ponto crítico de tudo, certamente, foi a introdução no cardápio, da famosa Pizza de Buchada de Bode. O lançamento do novo produto foi feito com alarde e , no domingo, a “Trattoria”, de repente, viu-se apinhada de gente, pronta a degustar a novidade, apresentada naquele dia com preço promocional. A metade da vila obedeceu aos chamados de Vaval e degustou a nova iguaria ,de difícil conservação, sofregamente, acrescida de maionese caseira ( uma outra novidade perigosa trazida pelo pizzarollo). O certo é que a maionese serviu de estopim e fez explodir a bomba de bactérias da buchada de Vaval.
                                   Em poucas minutos, viram-se todos acometidos de uma caganeira universal e fenomenal. Faltou moita ao redor de duas léguas da pizzaria. Folhas e sabugos eram disputados à tapa. O velho Antonio Sitó que usava calças presas em suspensórios, só nesse dia, gastou mais de cinco : baixando e levantando os elásticos. Negrinho ,mal saía da moita,  já pegava novamente a fila. D. Filismina, uma velhinha esguia, fina que só assovio de sagüi , simplesmente desapareceu. De tanto ir ao mato encontraram apenas o molhado no chão e o filho dela, ajoelhado ante a poça , chorava inconsolado : Mãe dissolveu! Mãe dissolveu !   A família de Juca Caçote estava com o velho de vela na mão, empanzinado há mais de quinze dias. Quando souberam da catástrofe, correram na pizzaria e trouxeram um pedacinho da pizza de buchada e fizeram Caçote , in extremis, engolir. De repente, ouviu-se um murmurejo na barriga do velho e ele começou a se contorcer como se estivesse com  dores de parto. O  barulho tomou forças de trovão e , subitamente, ele gritou :
                                   ---“Valei-me, meu São Luiz !” 
                                   Ouviu-se um tiro seco,  como de um canhão no  quartel. Foi um destroço: esgotou-se a fossa, o homem desentupiu e sarou.

                                   Passados os dias, as coisas foram voltando ao normal, em Matozinho. Tirante D. Filismina, não houve baixas. Apenas o  velho Sinfrônio Arnaud preocupava. Há mais de quinze dias permanecia em casa, cabisbaixo e capiongo. Fora acometido da fininha em grandes proporções, mas aparentemente já recobrara as forças. A família preocupou-se com o velho. Vaval e Bozó, então, resolveram fazer-lhe uma visita. Encontraram-no recluso e tristonho , num canto do quarto escuro. Só com muito esforço conseguiram arrancar dele uma explicação. O velho foi enfático, estava bem, não mais sentira nada, mas estava com uma pulga detrás da orelha.
                                   --- O que está acontecendo, Coronel, o Senhor tá doente ainda?
                                   --- Não, seu Vaval, estive quase com  passagem na mão, mas já sarei.
                                   --- Mas por que anda tão triste, tão jururu ? –pergunta Bozó.
                                   --- Meu filho,  é que passei mais de três dias cagando sem o cu saber. Aí peguei aqui a matutar:  com um fiofó ignorante desses, que nem dá notícia do que tá saindo, se pode lá confiar num diabos desses, rapaz !
                                   --- Confiar como, coronel ? Quis saber Vaval.
                                   --- Se inventar de entrar alguma coisa, um fiofó analfabeto desses, será que o miserável vai  dar-se conta ?


J. Flávio Vieira

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Os Pavôs e seus Filhetos


Zé Ramalho, em uma música famosa, criou uma denominação no mínimo curiosa: “Avohai”. Segundo ele um misto de pai e avô. A canção brotou de uma “viagem” do artista, numa das ruas de Olinda, aí pelos anos 70. Há certamente um quê de visionário neste delírio psicodélico do Zé. A partir daí , como por encanto, multiplicaram-se os Avohai´s. É que a revolução sexual, desencadeada mundialmente nos libertários e fulgurantes anos 60 , só aportou em terras brasileiras nas décadas subseqüentes. Aí começaram a se multiplicar os filhos desta liberdade, nascidos de pais adolescentes, em meio aos dourados sonhos juvenis e que acabaram por ser criados e educados pelos avós. Claro que , de alguma maneira , o aparecimento imprevisto destes bebês sobrecarregou toda uma geração que já imaginava ter cumprido o seu dever com os próprios rebentos, mas por outro lado encantaram e deram vida estes guris a pessoas que muitas vezes se consideravam inúteis e incapazes . De repente viram suas vidas florescerem com a chegada buliçosa dos netos.

Nos dias atuais, esta geração, que poderíamos chamar de “filhetos” ( uma mistura de filhos e netos), já cresceu o suficiente para ter a certeza absoluta de que o mundo lhe pertence, no que não está em absoluto errada.. O problema talvez diga respeito à porqueira de mundo que herdaram. A violência campeia por todo o país; as drogas anteriormente utilizadas com uma certa aura ritualística hoje se banalizaram e atapetam os noticiários de tragédias; o suicídio entre adolescentes aumentou para proporções inimagináveis; o aproveitamento escolar parece uma lástima. Talvez hoje se devesse mudar a denominação de “Avohai” para “Pavô” , tamanho o medo que vem assolando os pais e avós com o destino de seus descendentes. Os meninos nos parecem hoje totalmente perdidos : estudam pouco; suas festinhas começam depois da meia noite; quase não lêem um livro qualquer que seja; têm iniciação sexual geralmente com os primeiros namorados; parecem-nos extremamente irresponsáveis e inseguros; quase na sua maioria fazem-se muito pouco espiritualizados e a droga lhes é uma palavra bastante corriqueira e pouco tenebrosa. Além de tudo muitas vezes mostram poucas perspectivas de crescimento intelectual e profissional. Até mesmo o sonho de independência das gerações anteriores, eles não mais os têm: se pudessem jamais sairiam de casa. No casamento já não juram até que a morte os separe, mas até que a primeira briga os aparte. Separados retornam para “casa paterna , seu primeiro e virginal abrigo” , geralmente com os filhos a tiracolo.

O primeiro ímpeto dos “Pavôs” leva à conclusão mais óbvia: as velhas gerações foram mais bem educadas e seus guris aparentavam bem mais resolução e desenvoltura e bem menos vícios acachapantes. Diz-se, também, à boca miúda : estudávamos mais e tínhamos mais gana de mudar o planeta. Esta postura, no final das contas, não traz embutida nenhuma novidade, ela se repete em moto-contínuo de geração a geração. Os novos hábitos vêem-se com reserva, os novos costumes interpretam-se de forma bastante crítica. Com a mesma intensidade que os adolescentes confrontam as antigas verdades, os mais velhos torcem o nariz para as novas formas de pensar e ver o mundo. Mas afinal as deformidades tão facilmente apontadas nos “filhetos” têm ou não fundamento ?

Vamos por partes. Em primeiro lugar eles herdaram um mundo construído pelas gerações que lhes antecederam e tiveram que rapidamente se adaptar à triste herança que lhes legamos. A violência generalizada os tornou inseguros bem além da insegurança normal da idade e os prende mais fortemente ao ninho dos pais. Lêem e estudam menos na visão tradicional destes dois verbos, pois hoje têm uma infinidade de meios de obterem o conhecimento fora das páginas dos livros : a TV, o computador, a Internet, o telefone, o vide-cassete. Com o bombardeio incessante dos meios de comunicação ligam-se mais à imagem do que à palavra. O mundo que lhes legamos, por outro lado, lhes tolhe as perspectivas de um crescimento interior : a todo momento a geração dos “Avohai´s” lhes prega a verdade material : a felicidade está no consumo, é mais importante calçar um tênis Nike do que degustar Sêneca. A religiosidade dos novos foi em muito tolhida pelos “Pavôs”, cientes de que uma das formas de liberdade era a da escolha de credo e de que ninguém tinha o direito de impingir isto às crianças. A liberdade sexual também herdaram do grito libertário dos hippies dos anos 60 , o “Fica” faz-se apenas uma remasterização do antigo “sarro” ou “Casquinha”. O embevecimento no uso de drogas alucinógenas veio, certamente, da mesma fonte dos hippies e beats. Foram, também os “Avohai´s” que lhes deram aulas sobre a dissolubilidade do casamento que acaba sendo uma busca de felicidade comum( mesmo que efêmera) e não uma condenação às galés perpétuas. Talvez muitos deles não lutem por um crescimento profissional por vias mais retas porque a todo instante têm exemplo de que para chegar no éden do consumo existem veredas mais curtas: os pistolões, as maracutaias , a corrupção, a sonegação, o baba-ovismo. Estas aulas todas lhes ministraram as gerações anteriores, através da concreta arma do exemplo.

Antes de criticá-los e tecer previsões sombrias sobre seu destino é imprescindível lembrar que eles apenas estão inseridos num outro mundo cheio de avanços fenomenais e deformidades terríveis e esta ordem de coisas eles a herdaram . Talvez, apenas, se encontrem atônitos e embasbacados sem saber bem o que farão com tamanha batata quente nas mãos. Tomara que , com a força transformadora da juventude, consigam corrigir os rumos da humanidade e fazer deste planeta um lugar mais justo, mais solidário e mais respirável. Se não conseguirem este intento, ao menos terão o direito de pôr a culpa na próxima geração, exatamente como têm feito os seus “Pavôs” .

J. Flávio Vieira

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Hugo Linard, o maestro dos teclados e acordeon, no Cariri Encantado desta quarta-feira, dia 20 de abril.

Até que enfim! O Cariri Encantado recebe hoje, a partir das 14 horas pelas ondas sonoras da Rádio Educadora do Cariri, 1020 khz, o maestro Hugo Linard já de brincadeira com seu novo acordeon ROLAND digital. Na conversa, com uma trilha sonora ao vivo, vamos ouvir estórias e conferir o caminho que percorreu o menino Hugo que desde os 5 anos de idade já empunhava uma sanfona como gente grande. Hugo, recentemente, completou 65 anos de idade e comemorou, em grande estilo com uma festa no Crato Tenis Clube, os 60 anos dedicados à musica. Pela internet, você pode sintonizar o Cariri Encantado - Protagonistas! no endereço: www.radioeducadoradocariri.com.br.

domingo, 15 de abril de 2012

A Carroça de Mamulengos - Emerson Monteiro

Um clã organizado que viaja o Brasil produzindo arte popular através de espetáculos circenses, eis o retrato resumido dessa trupe de artistas formada de irmãos da mesma família para festas de intensa alegria, músicas e cores, mostradas em praça pública, revivendo no palco das ruas e praças do Cariri as boas noites do que oferece silenciosa felicidade, aos olhos brilhantes de crianças atenciosas ao novo que recebem.

O prenúncio desse grupo de artistas remonta 1975, em Brasília, quando seu idealizador, Carlos Gomide, trabalhava de junto do diretor de teatro Humberto Pedrancini, em outro grupo chamado Carroça. Ano seguinte e conheceria o espetáculo Festança no reino da mata verde, do Mamulengo Só Riso, assim reforçando o gosto pelo teatro de bonecos.

Em 1978, Carlos conheceu Antônio Alves Pequeno (Antônio do Babau), mestre brincante paraibano da cidade de Mari, buscando-o em 1979 para desenvolver o aprendizado nos espetáculos dos bonecos. Um ano e meio de convivência seria o suficiente para o discípulo estruturar o conjunto de bonecos da mesma brincadeira e receber permissão do mestre para levar adiante a tradição milenar em viagens pelo País, isto que vem informado no site do grupo na Internet.

Em 1982, ainda no Distrito Federal, se incorporou ao elenco das peças a teatróloga Schirley França, futura esposa de Carlos Gomide, de cuja relação nasceriam os oitos filhos do casal que compõem a base atual da caravana artística que nos visita: Maria, Antonio, Francisco, João, Pedro, Mateus, Luzia e Isabel.

Na melhor qualidade desses espetáculos, em turnê patrocinada dentre outros pela Petrobras, a Carroça de Mamulengos alimenta o encanto da arte espontânea dos terreiros, feiras e festivais, essência natural das manifestações coletivas de cunho popular, o que traduze em termos presentes os primórdios da Grécia mais antiga, naquilo que chamaram ditirambo, fonte arcaica do teatro moderno e do cinema industrial.

Desta maneira, revivem sonhos e vivências comunitárias em ações plenas de música, dança, jogos, diversões, folguedos, confraternização, força pulsante dos universos da beleza inesperada, isso diante da tecnologia artificiosa destes dias massificados da artificialidade vendida aos borbotões nos vídeos distanciados da gente.

Nossos votos de boas vindas e sucesso à Cia. Carroça de Mamulengos nas cidades do Cariri que desfrutam a luminosidade dos instantes mágicos que traz ao povo.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Gêtsemani


Não, não transparecia cansaço nem fastio, embora a cena se repetisse há tantos e tantos anos. Apenas uma leve asa de indignação ruflava ao seu derredor. Como um moderno Prometeu acorrentado, fazia-se eterno pasto à águia do cristianismo. Parece até que ganhara a maldição da imortalidade. Ressuscitavam-no todo ano, em meio às velas, ao vinho e ao roxo da Semana Santa. No seu curto e sub-reptício reinado, fazia-se, rapidamente, senhor de uma quinta , ganhava roupas esfarrapadas, mas modernas, metia-se a cavaleiro. Metamorfoseava-se de uma personalidade qualquer escolhida entre os sempre novos e fartos Judas da humanidade e partia, no Domingo da Ressurreição, para o seu calvário particular.Até um testamento lhe seria providenciado, ele que não deixara sobre a terra nenhum legado que fosse além da pura e cristalina infâmia. Até os 30 dinheiros, levara ao santuário antes do pêndulo do corpo e do final balanço da corda.

Suas memórias, se escritas, seriam um farto material para o estudo do inconsciente coletivo. Havia, com certeza, algo de sanguinário, de sádico e tribal naquela malhação.A simples encenação daquela selvageria, no fundo, contradizia-se frontalmente com as lições de amor, de solidariedade e compreensão que terminaram por permear todo o Novo Testamento. A primeira pedra que ninguém ousara lançar sobre Madalena , agora fariseus multiplicados aos montes atiravam nele com sanha animalesca, sem nenhum remorso, sem nenhum pejo.

Neste ano, ali estava novamente no cadafalso, aguardando o desenlace tão previsível. Enquanto observava a faísca zigzagueante do estopim, teve , por fim uma clara visão do mundo que um dia abandonara pensando em se livrar dos seus demônios e fantasmas. Na verdade a turba não malhava ao Judas, mas tentava destruir as imperfeições pessoais que via nele refletidas. É como se diante do espelho, o quebrassem, por temerem a imagem horrorosa mas verdadeira que se revelaria na superfície cristalina. Nada mudara em tantos anos! Bastava fitar a multidão para ver claramente presente e cristalizado em todos os corações o veneno um dia inoculado no Gêtsemani: a indecisão de Pilatos, a tríplice negação de Pedro, a parcialidade de julgamento de Caifás, a eterna opção dos eleitores por Barrabás. Parecia claro para ele agora que não foram os filhos do Pai que povoaram o mundo, mas sim a raça de Judas. Sim, seus filhos tinham prosperado como nunca sobre a face da terra . Estavam muitos ali familiarmente reunidos, com suas fraquezas, suas indecisões e seus vícios bem à mostra : lábios preparados para o beijo fatídico, mãos entreabertas esperando, sofregamente, os trinta dinheiros...

J. Flávio Vieira

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dia 14/04 ,sábado, Grande Festa Show dançante, no Crato Tênis Clube.


Os preparativos para a grande festa que comemora os 60 anos de música e 65 de vida do maestro Hugo Linard - no próximo sábado! - estão acontecendo em varios espaços. Um deles, onde estive presente e participando do ensaio, foi na residência do compositor e músico Hildelito Parente. Repassamos músicas que relembram os anos áureos dessa turma de sessentões e que constarão do refinado repertório da orquestra no grande baile. Hugo, esbanjava alegria com seu novo brinquedinho: um super acordeon ROLAND digital, presenteado por todos aqueles que estarão nessa noite memorável.
Ingressos avulsos ainda podem ser encontrados na bilheteria do Crato Tênis Clube, na noite do evento.
Ainda dá tempo!

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O Mercado da Ética


Causou estardalhaço reportagem recente do Jornal Nacional sobre um grande esquema mafioso nas licitações públicas. Com câmeras escondidas, foram reveladas as vísceras de alguns desses esquemas , onde, com envolvimento de empresas e gestores, são armadas imensas farsas licitatórias, com desvio de polpudas frações do orçamento para os bolsos de empresários do ramo e inúmeros membros da gestão pública. A chaga exposta nos espanta , mas a rigor nada daquilo era do inteiro desconhecimento da população medianamente informada. Existe quase que um pacto tácito entre eleitores e governo : --Não tem jeito, se diz, é assim que a coisa funciona! Desde a mais remota prefeiturazinha desse Brasilzão imenso, até a mais desenvolvida metrópole, o mesmo filmezinho a que assistimos no JN é exibido todo santo dia. A Licitação é um mero artifício utilizado por quase todos com o fito de dar aparente legalidade ao crime mais hediondo : aquele que arranca merenda escolar da boca das crianças, ambulâncias de enfermos e remédios indispensáveis dos idosos. Tudo isso pode acontecer, amigos, sem nenhum problema, só não pode sair no Jornal Nacional que aí a revolta é geral.

A coisa é tida como tão normal e necessária , ouvintes, que até a gerente de uma empresa definiu perfeitamente a questão : “É a Ética do Mercado, amigos, é assim que funciona!” E perguntou em que moeda o pretenso gestor gostaria de receber a sua parte no bolo : Dólar, Euro, Iene ? Inclusive, mesmo depois das filmagens terem chegado à Mídia, para o conhecimento de uma população que se fingia indignada em nada saber, a gerente repetiu a sua frase , sem nenhum pudor : “É a Ética do Mercado, é assim que funciona !” A média seria um desvio de 15 a 20% para o bolso dos espertalhões.

Não tenho nenhuma dúvida de que a gerente não carrega consigo nenhum sentimento de culpa. Nem ela , nem todos os demais envolvidos , Brasil afora. Quem estuda um pouco de Ética sabe que um dos maiores problemas a se enfrentar é a sua relatividade. A Ética particular, privada, específica de um pequeno grupo é um verdadeiro pântano. Adentrou nessa seara dali não se sai imaculado. Eichmann , no seu julgamento , em nenhum instante se achou culpado pela morte premeditada de milhões de judeus nos campos de concentração: estava seguindo ordens, dizia, e se fosse possível retornar no tempo, reafirmava : eu repetiria novamente todas as medidas genocidas! Os islâmicos que se imolaram jogando os aviões nas Torres Gêmeas, levando junto quase 3000 civis, até o último momento se sentiram heróis de uma causa e assim são reverenciados. A política partidária tem também uma ética própria onde mentir, burlar, montar Caixa 2, prometer e não cumprir, fraudar são práticas perfeitamente aceitáveis e permitidas; diz-se sempre que só existe um crime hediondo em se tratando dessa área : Perder Eleição! Não é muito diferente a atitude de algumas religiões no que tange à proibição aos avanços científicos que poderiam levar ao alívio do sofrimento em milhões de pessoas no que tange à fertilização in vitro, às Células Tronco e até mesmo às transfusões de sangue. Todos partem de uma Ética particular e relativa, seja religiosa, política, geográfica ou cultural. E aí firma-se o impasse inevitável : se todos temos nossa Ética pessoal, de grupo, e exigimos , com unhas e dentes, que ela seja aceita, não podemos, claro, criticar a Ética particular alheia.

Como enfrentar o labirinto ? Fugindo do relativismo! Precisamos procurar valores éticos universais, distantes da gelatina das pequenas questões de grupos, de etnias , de culturas , de religiões. E a Filosofia já nos abriu algumas trincheiras balizadoras. Vamos lembrar dois gigantes nessa área. Primeiro o Utilitarista Stuart Mill (1806-1873) que já explicitava : “O mais Ético caminho é aquele que leva o maior Bem ao maior número de pessoas”. Pois bem, apliquemos nas fraudes licitatórias e veremos que não há nenhuma ética em beneficiar um pequeno grupo de farsantes em detrimento da maior parte da população. O outro, Emmanuel Kant (1724-1804) , afirmava categoricamente : “Devemos agir como se os nossos atos pessoais possam valer como princípios de uma Legislação Universal”. É fácil perceber que tornar as peripécias dos mafiosos da licitação numa verdade mundial seria a implantação definitiva do caos. E falamos apenas de Ética , amigos, junto disso corre ainda a Lei que deve punir rigorosamente os infratores e balizar todas as nossas relações humanas.

O diabo é que a maior parte dos males da modernidade está ancorada nesta cegueira parcial que é a relatividade da visão Ética. A sobrevivência do planeta , hoje, depende muito mais da Ética do que da Ciência. É preciso enxergar além do nosso quintal : as receitas que utilizamos para nosso pomar não servem, necessariamente, para a floresta, a catinga e a savana que se estendem por milhares de quilômetros à nossa frente.


J. Flávio Vieira